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Abnael Machado

ACIDENTE AVIATÓRIO: História de Sobrevivência


Abnael Machado - Gente de Opinião
Abnael Machado

A Produção do Programa Fantástico, da Rede Globo, tem em curso um projeto muito interessante do ponto de vista histórico relacionado com o Estado de Rondônia. A partir da localização do Coronel-Aviador Jadir Campos, que reside em Recife, já na reserva da Força Aérea, foi desencadeado um projeto de pesquisa no sentido de localizar determinadas pessoas que sobreviveram ao acidente aviatório com um Catalina da FAB, em fevereiro de 1968, durante um vôo entre Forte do Príncipe da Beira e Guajará-Mirim, aliás, o mais grave acidente de que se tem notícia em tal trecho durante as várias décadas de história da famosa Rota Aérea Rio-Acre, a legendária aerovia que durante décadas foi a principal via de integração nacional do Brasil na época em que as estradas de integração nacional ainda não existiam.


Essa famosa aerovia de integração coberta pelo Correio Aéreo Nacional (CAN) foi percorrida por famosos pilotos militares, veteranos da Segunda Guerra Mundial, entre os quais o brigadeiro Eduardo Gomes e o famoso Mello Maluco, o grande piloto militar que ganhou tal antonomásia pela intrepidez que demonstrou no teatro de guerra da Itália, sendo um dos raros pilotos que ousavam aterrissar na pista de Conceição em tempos de alagação quando o campo de pouso ficava reduzido a escassos duzentos metros. O outro piloto que também realizava tal façanha era o Comandante Rezende, da Cruzeiro do Sul, igualmente veterano das batalhas aéreas da Europa. Naquela época os aviadores da FAB usavam ainda um uniforme de vôo de cor cáqui que os fazia parecer integrantes da Guarda Territorial. Eu conheci muito de perto todos os pilotos famosos da Rota Aérea Rio-Acre, inclusive o brigadeiro Eduardo Gomes, pois o passatempo preferido da meninada de Conceição era  ver as chegadas e partidas dos aviões, isto quando não nos juntávamos na matinha baixa da cabeceira-sul da pista para ver os aviões passando a escassos dois metros acima de nossas cabeças, brincadeira que somente anos mais tarde fui saber que era uma espécie de roleta-russa, mas que felizmente nunca teve maiores conseqüências para o grupo de meninos imprudentes que a praticavam.


De alguma forma que desconheço, os competentes repórteres da Rede Globo chegaram ao meu nome nas suas investigações sobre o acidente aéreo ocorrido há trinta e nove anos, quando eu contava apenas dezoito anos e alguns meses. Acontece que eles não sabiam ainda que eu tive uma ligação direta com aquele acidente aéreo, já que sou um privilegiado sobrevivente, pois o meu nome estava relacionado na lista de embarque na condição de passageiro prioritário, em razão de que o meu deslocamento a Guajará-Mirim tinha por motivo providenciar os papéis de minha incorporação ao Exército, assunto que na época só podia ser resolvido na 6ª Companhia de Fronteira. Mas eu perdi o avião. E o perdi de uma forma muito estranha. Como morava em Conceição, onde se localizava o aeródromo, eu esperei o avião durante três dias. No terceiro dia, bem de acordo com a história de que há coisas que só acontecem comigo e com o meu Botafogo, após o almoço, troquei de roupa e fui para o Forte do Príncipe ajudar no embarque de uma carga de milho do pai do atual Coronel da reserva Tupinambá Dantas da Silva, o Sargento Elias, cuja esposa e uma filha seriam sobreviventes do vôo fatídico. Por volta das quatro e meia da tarde, em roupas de trabalho e a quatro quilômetros do local de embarque, contemplei, desolado, o imponente Catalina manobrando para aterrissagem sobre a velha fortaleza, fato que indicava que as minhas chances de embarcar no avião eram absolutamente nulas. Fiquei desolado por umas duas horas, mas quando cheguei de volta a Conceição no finzinho da tarde já encontrei o rebuliço do desaparecimento da aeronave, e a minha mãe dando mil graças a Deus pelo fato de eu haver perdido o voo.


Passados quase quarenta anos, a tragédia, ou quase tragédia, do Catalina da FAB pode ser analisada à luz fria dos fatos históricos que a envolvem como uma mistura de lambança, coragem, muita perícia e inusitado heroísmo. A lambança fica por conta do fato de que o jovem Tenente-Aviador de nome Lauro (não sei dizer qual seria na época o posto ocupado na tripulação pelo atual Coronel-Aviador R-1 Jadir Campos, mas ele poderia ser o co-piloto, já que Catalinas eram normalmente tripuladas por dois oficiais e quatro sargentos), ao decolar de Porto Velho para Guajará-Mirim, com vários passageiros destinados a Guajará, constatou pelos cálculos horários que teria de pernoitar no Forte do Príncipe, lugarejo plantado bem no seio da selva, onde não havia hotéis, nem restaurantes, nem bares de qualidade e nem boites. Tudo leva a crer que essas carências do Forte do Príncipe influenciaram diretamente a alteração temerária do plano de vôo levada a cabo pelo Tenente Lauro. Ele simplesmente resolveu passar direto sobre Guajará-Mirim e aterrissar no Forte, decisão que resultaria uma sentença de morte para os dois soldados do Exército que pereceram no acidente e que deveriam haver desembarcado em Guajará-Mirim. Ora, no final da década de 60, Guajará-Mirim era uma florescente cidade ainda movida pela economia remanescente do segundo ciclo econômico da borracha, com toda a infra-estrutura de uma boa cidade como hotéis, bares, restaurantes e sobretudo muitas boites, inclusive havia na época o famoso bairro boêmio chamado Boca Negra, bas-fond freqüentado por homens das mais variadas extrações sociais  Os pilotos que operavam na Rota Aérea eram sabidamente grandes apreciadores de pândegas. Costumavam também manter várias namoradas em diferentes cidades da Rota. Embora tal aspecto não tenha sido apurado no contexto da tragédia, não seria nenhum absurdo supor que o Tenente Lauro tivesse alguma namorada em Guajará-Mirim e pretendesse visitá-la durante a escala na cidade com pernoite. Deu quase tudo errado, mas o jovem Tenente-Aviador redimiu-se de qualquer erro eventual que tenha cometido antes com a perícia com que lidou com a pane do avião que pilotava depois.


Os hidroaviões Catalinas, via de regra, eram tripulados por seis militares, conforme já vimos antes, um oficial piloto, um oficial co-piloto, um sargento telegrafista, um sargento mecânico de vôo, um sargento de logística e um outro sargento que se ocupava de assuntos diversos, às vezes enfermeiro, quase sempre telegrafista também, uma espécie de regra três do telegrafista principal, já que na época os aviões eram orientados pelas Rádios-Farol localizadas em pontos estratégicos da Rota Aérea Rio-Acre. Todos os aviões remanescentes da Segunda Guerra Mundial podiam voar até sem o mecânico de vôo, mas nunca sem o telegrafista. No caso da Catalina pilotada pelo Tenente Lauro, até hoje os números são algo controversos. Quando utilizada como avião de transporte de passageiros, uma Catalina tinha capacidade para conduzir mais ou menos trinta pessoas como passageiras e os seis tripulantes. No caso do avião acidentado, pelo fato de os passageiros de Guajará-Mirim não haverem sido desembarcados, o avião estava superlotado com 38 passageiros. O número de tripulantes divulgado na época do fato era de cinco, perfazendo um total de 43 pessoas a bordo. Os sobreviventes da tragédia não se lembram com exatidão dos números, nem mesmo o grande herói do acidente, cuja ação foi responsável pela sobrevivência de muitos feridos, o então jovem soldado do Exército Francisco Martins do Nascimento, mais conhecido pela alcunha de Leão e popularmente conhecido em Guajará-Mirim por Martinzão, que na época do acidente contava apenas dezenove anos de idade e era ainda um recruta, incorporado ao Exército há poucos meses.


Em proveito da verdade histórica, é válido esclarecer que a Catalina comandada pelo Tenente-Aviador Lauro não caiu na real acepção do termo. O que de fato aconteceu foi um pouso forçado sobre as copas altas de gigantescas castanheiras, uma espécie de arvorissagem, conquanto tal neologismo não seja parte integrante do jargão aviatório.  Poucos minutos após a decolagem de Conceição, antes que tivesse alcançado a altitude ideal de cruzeiro de aviões daquele tipo, o Tenente Lauro perdeu um dos motores da aeronave, que teve de ser embandeirado, termo técnico usado no jargão da aviação para denominar o travamento de um motor que entre em pane. O avião não devia estar a mais de quatrocentos metros do solo. O excesso de peso não permitiu o recurso de retornar à pista de pouso de Conceição, pois sem um dos motores a manobra se fazia por demais arriscada. De igual modo, embora a aeronave fosse um hidroavião, com possibilidade de aquatizar (ou seria aquatissar, já que os bons dicionários não definem?), ao que tudo indica as dificuldades de manobra não permitiram que o piloto se dirigisse para o rio que estava à sua esquerda. A solução que sobrou foi continuar voando em linha reta, perdendo gradativamente a pouca altitude alcançada, tentando a redução do excesso de peso mediante o recurso de jogar as bagagens fora, calvário que se prolongaria por mais de uma hora de voo, até o momento em que a aeronave nivelou-se perigosamente às copas altas das castanheiras, a escassos cinco minutos de voo da cabeceira da pista de Guajará-Mirim, na região do rio Ouro Preto, afluente do Pacaás Novos pela sua margem direita. Com magistral presença de espírito, o Comandante Lauro, ao perceber que o acidente seria inevitável, desligou o motor que lhe restava e fez o avião planar sobre as copas das árvores até pousar de barriga sobre as altas copas das castanheiras. O avião partiu-se em dois, mas apenas quatro pessoas morreram, dois soldados do Exército e duas crianças. A perícia do piloto evitou que houvesse um incêndio pós-queda. Os feridos foram muitos e em graus diversos de gravidade, mas houve um certo número de passageiros que saíram sem sequer um arranhão, entre os quais uma jovem chamada Marluce Campos e o grande herói da tragédia, soldado Francisco Martins do Nascimento, conhecido por Leão, originário de uma família de Porto Velho, embora no momento da queda tenha sido arremessado para o interior da cabine de comando, caindo sobre a mesa de telegrafia, onde permaneceu desacordado por algum tempo, além de preso entre as ferragens das quais se desembaraçou tão logo recobrou os sentidos. De família também de Porto Velho, estavam entre os sobreviventes da tragédia, que por pouco não foi evitada pela perícia incomum do piloto, as jovens Terezinha e Regina Paraguassu, sendo uma delas (Terezinha) a miss  que o pessoal da Rede Globo localizou na reportagem da antiga Revista Cruzeiro.


Como o mundo é muito pequeno e para algumas pessoas ele é ainda menor, em 2005, quando o Coronel Tupinambá Dantas da Silva comandava o Batalhão Cacique Ajuricaba, o 54º Batalhão de Infantaria de Selva, sediado em Humaitá, veio servir naquela unidade, na condição de Subcomandante, o Major Bersa (ou Bessa), filho de um dos tripulantes da Catalina acidentada em 1968. Como o Comandante Tupinambá era filho de uma das sobreviventes e eu era o sobrevivente sortudo, que estava na lista, mas não estava a bordo do avião, nós três, por uma coincidência muito estranha, formamos três vértices de um episódio histórico acontecido há mais de três décadas. Detalhe interessante é que nós três tínhamos graduação de Oficial, embora eu só tenha feito de fato no Brasil os preparatórios para ingresso na AMAN, efetivando minha graduação em duríssimo regime de além-fronteira, tendo abandonado a minha carreira de Primeiro Mundo em prol da preservação de minha nacionalidade original. O grande herói do acidente, Francisco Martins do Nascimento, há muitos anos está vivendo na cidade de Guajará-Mirim, onde passou todo o resto da sua carreira militar iniciada no Forte do Príncipe da Beira. Seus atos de heroísmo nunca foram devidamente assentados na sua ficha de serviço militar, embora o seu Comandante (Tenente Joari Nascimento) os tenha testemunhado pessoalmente, já que foi um dos sobreviventes. No entanto, em 2006, trinta e oito anos após a tragédia, ele foi finalmente indicado junto comigo para receber a Medalha do Pacificador na restrita cota do 6º Batalhão de Infantaria de Selva pelos atos meritórios que praticou quando tinha apenas 19 anos de idade. A minha indicação ocorreu por razões de outra ordem que não vêm ao caso declinar. Perdemos a cobiçada condecoração para as prioridades daquele ano. Acredito, porém, que ele ainda chegará a receber a distinção em qualquer outro momento, bem como ter a sua folha de serviços devidamente revisada, com o assentamento correto dos seus atos heróicos, até porque a Pátria lhe deve isto.


No que tange ao Tenente-Aviador Lauro, Comandante do vôo sinistrado, correu na época a notícia de que teria perdido uma vista no acidente, fato que faz supor que tenha sido reformado na mesma época, já que seria impensável um aviador militar privado de um olho. De qualquer modo, qualquer que tenha sido o seu destino, e talvez o atual Coronel-Aviador R-1 Jadir Campos conheça tais detalhes, em que pese a lambança que cometeu no seu plano de vôo, a História tem a obrigação moral de registrá-lo como um herói, um Oficial de excepcional equilíbrio, um perito da Aviação Militar que evitou naquele distante crepúsculo de um dia de fevereiro de 1968 aquela que poderia ter sido a maior tragédia aviatória da nossa região. O seu gesto de provável vilania cometido no momento da alteração do plano de vôo, embora tenha custado a vida dos dois soldados que morreram, foi felizmente empanado pelo seu ato de heroísmo e perícia na condução da aeronave avariada ao longo do perigoso percurso que passou por sobre a Cordilheira do Pacaás Novos e resultou na sobrevivência de todos os tripulantes e de trinta e quatro dos prováveis trinta e oito passageiros que se encontravam a bordo, perdendo apenas quatro deles, num insignificante percentual de nove por cento (em números redondos) de perdas fatais para um incrível pouso sobre galhos a mais de cinqüenta metros do solo. Foi uma façanha digna dos melhores heróis da Pátria, talvez a última façanha aérea de um grande piloto que a fatalidade afastou da Força Aérea muito precocemente...

Fonte: MATIAS MENDES  -  matiasmendespvh@gmail.com
Membro fundador da Academia de Letras de Rondônia.
Membro correspondente da Academia Taguatinguense de Letras.
Membro correspondente da Academia Paulistana da História.
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes Mater.
Membro do Instituto Histórico Geografico de Rondônia

 

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