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"A natureza não tem voz, precisa de advogados"


 "A natureza não tem voz, precisa de advogados"  - Gente de Opinião

DEUTSCHE WELLE
Berlim

Durante a campanha eleitoral, o presidente eleito Jair Bolsonaro fez declarações relacionadas ao meio ambiente que preocuparam especialistas. O militar da reserva defendeu, por exemplo, a saída do Brasil do Acordo de Paris sobre o clima, que visa limitar o aumento da temperatura global em até 2ºC.

Outro ponto que preocupa é a provável fusão dos Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, pasta que poderia ter um ministro próximo da bancada ruralista.

O termo "meio ambiente" apareceu apenas uma vez no programa de governo do presidente eleito, justamente para se referir à essa eventual fusão.

"A natureza não tem voz, precisa de advogados. Sem ministério próprio, essa fusão prediz um desastre para a natureza. É muito míope", afirma em entrevista à DW Brasil Manfred Nitsch, professor da Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim e especialista em economia, desenvolvimento e meio ambiente.

O plano de governo de Bolsonaro também não citou o desmatamento ou a Amazônia, além de defender um afrouxamento para licenciamentos ambientais.

"Deixar a proteção desse precioso patrimônio nas mãos dos donos da riqueza, da terra e com empresas em busca de lucro poderia acabar com a Floresta Amazônica", comenta Nitsch.

O acadêmico alemão integrou o Programa Piloto do G7 e do Brasil para a Conservação das Florestas Tropicais do País, uma tentativa de encorajar o desenvolvimento sustentável no Brasil. Financiada pela comunidade internacional, a iniciativa durou quase 20 anos e foi encerrada em 2009, tendo produzido estudos que ajudaram a construir políticas públicas ambientais no país.

DW Brasil: Quais são as suas preocupações em relação ao governo de Jair Bolsonaro e à futura gestão do presidente quanto à Floresta Amazônica?

Manfred Nitsch: A primeira preocupação é o desprezo que Bolsonaro mostra pelos valores universais dos direitos humanos e da democracia. Seu elogio à ditadura militar e à tortura – e à tortura de Dilma Rousseff em particular – já lhe desacreditou enormemente no mundo.

Sobre a Floresta Amazônica, temo que haja um desmatamento sem ou com pouco controle. Isso vai mudar o clima global, porque a Floresta Amazônica é essencial para a circulação de ar, água e calor em todo hemisfério americano e além. Já se notam os resultados do desmatamento nas últimas décadas, com secas e inundações.

Seria um desastre não apenas para a Amazônia, mas para todo Brasil com suas estruturas naturais de água em nuvens, rios e aquíferos. Facilitar o avanço da fronteira agrícola e da mineração na Amazônia vai mudar o clima do Brasil e do mundo para pior. Assim dizem todos os estudos sérios pertinentes.

Ainda tenho esperança de que a comunidade internacional e a sociedade civil nacional com missão ecológica, se unidas, possam inibir o pior no Brasil.

DW:
Deutsche WelleQual seria o impacto global de uma eventual saída do Brasil do Acordo de Paris?

MN: Seria outra medida nociva para o país e para o mundo. A saída, ou quase, dos Estados Unidos do Acordo de Paris isolou Donald Trump no G20. Com o Brasil seguindo o mesmo exemplo, a comunidade internacional dos protagonistas perderia um aliado importante, que desde os tempos de José Lutzenberger [secretário nacional do Meio Ambiente no governo de Fernando Collor] havia sido um pioneiro.

DW: Como o senhor enxerga uma eventual fusão dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente na gestão de Bolsonaro?

MN: A natureza não tem voz, precisa de advogados. Sem ministério próprio, essa fusão prediz um desastre para a natureza. É muito míope. A Constituição de 1988 declara a Floresta Amazônica como Patrimônio Nacional. Deixar a proteção deste precioso bem nas mãos dos donos da riqueza, da terra e com empresas em busca de lucro poderia acabar com este valioso tesouro nacional. Deixar invadir essa área é inconstitucional, mas provavelmente vai haver impunidade. E internacionalmente, não se pode fazer quase nada, porque os interessados sempre gritam "internacionalização da Amazônia" e "integrar para não entregar".

DW: Como o senhor analisa as ameaças feitas por Bolsonaro de interromper demarcações de terras indígenas?

MN:
Demarcação e consolidação jurídica precisam de várias etapas. Por isso, pode ser que muitas demarcações ainda preliminares ou em processo sejam ameaçadas. Um certo colonialismo interno sempre se manteve vivo no Brasil. O anúncio de Bolsonaro [sobre as terras indígenas] é um retrocesso à época colonial e do império. Mas pelo menos seria uma promessa de manter as áreas já demarcadas, que são bastante grandes. Com o slogan "Muita terra para pouco índio", sempre existiram pressões para invadir esses áreas indígenas já demarcadas.

DW: Outra promessa de Bolsonaro é privatizar até 50 empresas estatais em seu primeiro ano de gestão. Isso é possível?

MN: Não é difícil vender essas empresas se houver vontade. Há inclusive a possibilidade de se privatizar dezenas de prisões, o que não será saudável para os detentos. Porém, entre os militares sempre houve uma facção nacionalista, que defende a empresa pública. Pode ser que o ajuste seja como no Chile de Augusto Pinochet: algumas empresas públicas com participação de militares e privatização e venda de outras, seja para oligarcas nacionais ou investidores nacionais e internacionais. 

DW: Quais outros desafios econômicos o senhor destacaria?

MN: Acabar com o "Custo Brasil", ou seja, os gargalos na infraestrutura, na burocracia e na educação pública. É preciso também reduzir o custo do crédito produtivo sem incentivar o endividamento de consumidores, reformar a legislação trabalhista após as novas regras controversas do governo Temer, combater a inflação e superar o ceticismo dos investidores estrangeiros sobre a retórica autoritária e inflamatória do novo presidente. Na era Lula, o Brasil foi um ator importante na política internacional. Com Bolsonaro, será difícil restabelecer múltiplas boas relações, tanto econômicas quanto político-diplomáticas. Com ele, creio que o Brasil não entrará para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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