Domingo, 9 de janeiro de 2022 - 12h50
Um comportamento desconhecido, observado nos últimos anos
por pesquisadores que estudam a vida dos botos cor-de-rosa, espécie tradicional
da Amazônia, foi publicado na revista científica Behaviour, no ano passado, e
deverá continuar sendo objeto de acompanhamento este ano, tão logo se resolva a
questão de financiamento para o projeto. O comportamento agressivo é o ataque
de machos a filhotes, inclusive a recém-nascidos.
A equipe de pesquisadores do Projeto Mamíferos Aquáticos
da Amazônia e do Projeto Boto é liderada pela cientista brasileira Vera Maria
da Silva, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), da
Fundação Grupo Boticário, que há 26 anos monitora os botos em campo, quase
diariamente, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Nesse período,
a população de botos marcados pelos biólogos alcançou 758 animais de todas as
faixas etárias.
“Há fêmeas que acompanhamos há cinco gerações: bisavó,
avó, mãe, filha, neta. São vários animais bem conhecidos”, disse Vera à Agência
Brasil. Todo ano são feitas expedições para capturar e marcar os animais, antes
de devolvê-los aos rios.
Em 2013, foi observado o primeiro comportamento incomum
na espécie Inia geoffrensis, que são os botos cor-de-rosa do Rio Amazonas. O
último registro data de 2018. “Para nós, foi uma surpresa”, disse a bióloga. O
comportamento observado destoa também de outras espécies de golfinhos. Os
pesquisadores não tinham registrado isso antes desse primeiro evento. Os outros
casos foram percebidos em 2014, 2016 e 2017.
Embaixo
d’água
Vera Maria explicou que, mesmo monitorando diariamente os
botos, a chance de registrar esse tipo de comportamento é reduzida, inclusive
porque a maior parte ocorre embaixo d'água, o que não é acompanhado pelas
equipes. Ela destacou também que o fato de não registrar, não significa que os
ataques não ocorram. “Nós é que não tivemos a oportunidade de registrá-los
antes”.
Outra questão é que, com tantas horas de observação
desses animais, por que tão poucos registros foram feitos e por que só
recentemente?, comentou a pesquisadora. São perguntas para as quais os
pesquisadores buscam respostas.
Até então, Vera Maria afirmou que esse comportamento
agressivo não era conhecido como uma característica dos botos da Amazônia. Ela
informou que um evento de agressão foi registrado por equipe da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) com o boto-cinza, da Baía de Guanabara,
que não confirmou, entretanto, a morte do filhote.
Há casos relatados com o golfinho do tipo
nariz-de-garrafa, ou flipper, que tem um comportamento reprodutivo diferente,
no qual os machos formam uma “aliança e controlam a fêmea por um período”, fato
que não ocorre com o boto da Amazônia, segundo a líder da expedição. Ela
Informou que para cerca de 70 espécies de golfinhos no mundo, há registro
apenas de agressões desse tipo para quatro ou cinco delas. “É muito pouco”,
disse.
A equipe pretende dar continuidade ao monitoramento,
fazendo observação diária da população de botos marcados na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. “Se aparecerem novas informações, temos
que registrar e ir reportando.”
Vera afirmou que existe a probabilidade de haver um
período com maior frequência desse comportamento, que é o correspondente ao
nascimento dos filhotes, entre setembro e outubro de cada ano. “Poderia ser que
esse tipo de comportamento já fosse mais frequente.” A meta da equipe não é se
dedicar especificamente a esse tipo de registro, mas continuar fazendo o
monitoramento.
Felinos
Os botos diferem de outros animais, como os felinos. Os
leões, por exemplo, têm comportamento agressivo mais conhecido. Quando eles
chegam em um grupo de duas ou três leoas, matam os filhotes que encontram e que
não são de sua linhagem, para garantir que apenas o seu DNA seja passado para
as próximas gerações. Além disso, matar a prole faz com que a fêmea entre em
ciclo estral, ou cio, mais rapidamente, ficando fértil para a reprodução.
“Ele cuida do seu harém e garante que aqueles filhotes
são seus”. O boto não tem esse comportamento de ficar com a mesma fêmea ou
grupo de fêmeas por um tempo prolongado, apresentando uma característica
reprodutiva que os pesquisadores chamam de “promíscua”, porque vários machos
copulam com várias fêmeas.
A cientista explicou que para os botos, não há vantagem
em matar os filhotes para garantir seu próprio filho, como no caso dos leões,
porque eles não permanecem com as fêmeas. “Como são promíscuos, podem estar
matando o próprio filhote. Por isso, do ponto de vista evolutivo, e também
dessas teorias de seleção sexual, a gente vê que o boto não se encaixa, e essa
agressão pode ser muito mais uma coisa disfuncional não adaptativa. Os machos
se agrupam e são muito agressivos entre eles, mas não formam esses grupos
coesos e de longa duração, como entre outras espécies existentes”.
A gravidez da fêmea do boto da Amazônia dura um ano. O
nascimento ocorre entre setembro e outubro, quando o nível da água está mais
baixo e há alimento em abundância. Embora ela copule com vários machos, tem um
filhote por gestação.
Com o advento da pandemia do novo coronavírus, o projeto
foi suspenso temporariamente, mas a expectativa é que as atividades de
monitoramento retornem este ano. Em dezembro de 2020, todos os membros da
equipe de 18 pessoas pegaram a doença. Preocupa à pesquisadora haver pessoas em
campo em áreas remotas que, em caso de necessidade, possam ser removidas
rapidamente.
Preservação
Vera Maria destacou a importância do boto no mundo. A
primeira espécie de golfinhos de água doce já foi extinta na China. Na Índia e
no Paquistão, existem outras duas espécies de água doce, na bacia do Rio
Ganges. Outras espécies são encontradas no rio Amazonas, no Brasil. “São
espécies endêmicas, que vivem exclusivamente na Amazônia. E a pressão sobre a
Amazônia e as águas da Amazônia é muito grande”, disse a cientista.
Segundo ela, os estudos que o projeto faz para conhecer
melhor a biologia são uma forma de garantir informações suficientes sobre essa
espécie para protegê-la, para ter uma conservação mais efetiva, e mostrar a
importância desses animais para a Amazônia como um todo e o equilíbrio do
ecossistema aquático. São espécies que estão bastante ameaçadas pela ação
humana, principalmente, apontou a cientista.
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