Terça-feira, 25 de setembro de 2018 - 13h57
RODRIGO FONSECA, roteirista e crítico de cinema
Especial para o Jornal do Brasil
Um dos capítulos mais perversos da história das ditaduras militares da América do Sul dos anos 1970 – a tortura de Pepe Mujica, confinado à solitária por quase uma década – ganha agora o circuito nacional.
Um longa-metragem anda reescrevendo, com as tintas do sucesso, a história do cinema uruguaio nas telas. Ovacionado em sua passagem pelo Festival de Veneza, “Uma noite de 12 anos” arrebatou o público das mostras competitivas de San Sebastián, na Espanha.
Sai de lá cercado pela expectativa dos exibidores: pode se tornar o maior fenômeno do Uruguai em circuito internacional desde “Whisky” (2003).
É a vez de os brasileiros conferirem como foi o calvário de um dos mais admirados líderes políticos das Américas. É o espanhol Antonio de la Torre, um dos atores favoritos de Almodóvar, visto por aqui em “Volver” (2006) e “Os amantes passageiros” (2013), que vive o hoje octogenário ex-estadista, nesta produção dirigida por Álvaro Brechner (do cult “Sr. Kaplan”).
“Antes das filmagens, estive no Uruguai, para ouvir tupamaros, os guerrilheiros que combateram o regime militar por lá, e conheci uma colega de Mujica. Ela me sugeriu: busque o Pepe que existe dentro de você”, disse Torre ao JB, num papo por telefone. “Se existe alguma ideia de heroísmo que pudesse associar a Pepe seria sua devoção radical às lutas sociais”.
Na trama de “La noche de 12 años”, Pepe é detido ao lado de outros dois “inimigos do Estado fardado”: Eleuterio Fernández Huidobro, vivido por Alfonso Tort, e Mauricio Rosencof, interpretado por Chino Darín, o filho do muso argentino Ricardo Darín. Eles ficaram presos de 1973 a 1985.
Doze anos de tortura vão unir ainda mais o trio. “Cheguei a conhecer o Mauricio real e me surpreendi com a maneira como ele manteve o senso de humor, apesar de tudo o que passou”, diz Chino. “Esses três, sozinhos, criaram no vazio da prisão um espaço de reflexão”.
Na entrevista a seguir, dada por telefone ao JORNAL DO BRASIL, diretor de “Uma noite de 12 anos”, Alvaro Brechner, abre um debate sobre a dimensão política do heroísmo e do silêncio. Para o cineasta, a cumplicidade entre os três personagens faz da obra mais uma reflexão sobre a jornada existencial no cárcere do que uma denúncia acerca dos horrores praticados pela ditadura uruguaia.
O sucesso de “Mau dia para pescar” (2009) e sobretudo de “Sr. Kaplan”
(2014) fez de você um dos diretores de maior sucesso do Uruguai na
atualidade, alcançando um prestígio como “cineasta autoral” que se
amplia agora com “Uma noite de 12 anos”. Curiosamente, essa sua
identidade de autor vem pela recorrente aposta na lealdade, tema de
todos os seus filmes. O que significa ser leal no contexto político em
que Pepe Mujica foi preso, nos anos 1970?
Álvaro Brechner:
Neste meu filme, três pessoas perderam a percepção sensorial do espaço e
são confinados ao silêncio por conta de uma prisão política. A
limitação da linguagem não quebra o companheirismo entre eles. Não havia
estabelecido uma relação consciente entre meus longas-metragens sob
esse prisma, mas a sua pergunta me puxa duas lembranças. Meu avô veio da
Polônia para a América do Sul, em meio à guerra, para fugir do avanço
da Alemanha nazista. Ele não conhecia as pessoas que vieram com ele, mas
usava o nome “ship brothers”, ou seja, “irmãos de navio”, para se
referir aos anônimos que tinham um destino similar ao dele e que,
juntos, solidarizavam-se para que a viagem desse certo. Para que desse
início, da melhor forma possível, a uma nova vida. Solidariedade é o
pacto de convívio que vem das circunstâncias trágicas, expresso em
mínimos gestos. Tem um filme que adoro, “O espantalho”, de Jerry
Schatzberg (Palma de Ouro em Cannes de 1973), no qual Al Pacino elegia
Gene Hackman como seu melhor amigo apenas porque este lhe deu um
cigarro. São dois desvalidos. Mas, num gesto, eles criam uma amizade. O
destino às vezes abre um lance de cartas em nossa mesa que não
escolhemos, mas precisamos aprender a embaralhá-los.
Fala-se
muito da figura de Mujica em “Uma noite de 12 años”, mas o real
protagonista de seu filme é outro: a solidão. Três homens são condenados
à solitária para enlouquecer em um processo ditatorial. Como é
representar essa condição de abandono absoluto?
Em meio às
pesquisas para o filme, estive com os três personagens reais que abordo
na trama: o jornalista e escritor Mauricio Rosencof, vivido por Chino
Darín; (o ex-senador, morto em 2016) Eleuterio Fernández Huidobro,
vivido por Alfonso Tort; e Mujica. Eu ouvi deles uma frase perturbadora:
‘Sinto falta do calabouço”. A explicação para isso: “Nunca tive tanto
tempo de estar comigo mesmo quanto nos dias em que estive na prisão”. O
filme que fiz é menos sobre a ditadura uruguaia e mais sobre a jornada
existencial de pessoas que estiveram no precipício da escuridão e
voltaram dele. É uma história sobre como abraçar a solidão e convertê-la
em um alimento para o espírito, num embate entre o determinismo e a
liberdade.
Que carga de heroísmo você atribuiria a Pepe Mujica, ou, pelo menos, à representação que seu filme traz dos feitos dele?
“Herói”
é uma palavra que uso com muita moderação, porque ela é forte demais.
Ser você mesmo já é, diante da conjuntura deste nosso mundo, um ato
heroico. No caso, temos em Mujica a certeza de que nunca houve derrota
completa e a sensação de que as vitórias são parciais. Naquela situação
de isolamento retratada em “12 anos...”, vemos uma reinvenção e, a
partir dela, percebemos que situações limites nos revelam o quão fortes
somos capazes de ser quando necessário. O heroísmo que me interessa aqui
é ver alguém passar pela fase mais tenebrosa de sua vida e sair dela
inteiro.
Mas o que a perseverança destes homens te mostra sobre o passado do Uruguai?
Filmes
não ajustam contas com o passado, eles não devem ter esse fardo de
“resolver” feridas históricas. Filmes são apenas redescobertas sobre
modos de viver. Eles voltam ao passado para que possamos compreender
sentimentos, rever sensações. Não me interessa fazer filmes que se
resumam a fatos, a contar situações apenas pela força dos eventos. O que
me interessa são as inquietações existenciais. A poesia da arte está
aí.
A projeção de “Uma noite de 12 anos” em Veneza foi um
sucesso, com uma discussão quase em coro da força trágica do silêncio
naquele ambiente de confinamento, capaz de simbolizar a angústia de
todas as nações sul-americanas que enfrentaram ditaduras nos anos 1960 e
70. O que o silêncio representa como ferramenta dramática nesse
contexto?
Tem uma frase do filósofo Wittgenstein que diz:
“Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”. O silêncio é a
medida daquilo que as palavras não podem descrever, como a sensação de
uma prisão que durou anos a fio. Se você alguma vez encontrar alguém que
passou por um campo de concentração nazista, vai notar que ela tem
pouco a dizer. E por dois motivos: 1) se esse sobrevivente encontrar
alguém que também passou por um desses campos, as palavras não vão
acrescentar nada; 2) se esse sobrevivente tiver que explicar o que viveu
para alguém que nunca passou por uma tragédia como a do jugo nazista,
seu ouvinte nunca entenderá o horror em toda a sua inteireza. Eis o
silêncio.
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