Segunda-feira, 8 de janeiro de 2018 - 07h45
Peter Moon | Agência FAPESP – No Brasil, a hepatite C é a maior responsável por casos de cirrose hepática e, por consequência, pelos transplantes de fígado, de acordo com o Ministério da Saúde. Em São Paulo, segundo a Secretaria de Estado da Saúde, cerca de 50% dos transplantes de fígado ocorrem em pacientes portadores de vírus da hepatite B ou C, sendo que o segundo responde sozinho por 40% de todos os transplantes de fígado.
Além disso, as terapias disponíveis para o tratamento dos doentes com hepatite C são dispendiosas, apresentam efeitos colaterais e resistência viral. Por todas essas questões, estudos para o desenvolvimento de terapias antivirais mais eficientes são necessários.
Compostos isolados do veneno de animais têm mostrado atividade contra alguns vírus, como da dengue, da febre amarela e do sarampo. Foi a partir dessa linha de investigação que pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e da Universidade de São Paulo (USP) acabam de publicar dois artigos nos quais apresentam resultados promissores de compostos com comprovados efeitos antivirais no combate ao vírus da hepatite C.
O primeiro experimento, cujos resultados saíram na PLOS ONE, visou testar propriedades contra o vírus da hepatite C de três compostos isolados do veneno de uma espécie de cascavel, a Crotalus durissus terrificus, conhecida como cascavel-de-quatro-ventas, boiçununga ou maracamboia.
O trabalho foi realizado no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp, em São José do Rio Preto, pelo grupo de Virologia do Laboratório de Estudos Genômicos, coordenado pela professora Paula Rahal, e no Instituto de Ciências Biomédicas (ICBIM) da UFU, no Laboratório de Virologia, coordenado pela professora Ana Carolina Gomes Jardim. O trabalho contou com diversos apoios da FAPESP, além de CNPq, Fapemig e Royal Society (Newton Fund).
Os compostos retirados do veneno de cascavel foram isolados no Laboratório de Toxinologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, chefiado pela professora Suely Vilela Sampaio.
Trata-se de duas proteínas: a fosfolipase A2 (PLA2-CB) e a crotapotina (CP). No veneno da serpente, esses compostos se encontram associados como subunidades de um complexo proteico, a crotoxina (CX), também testada.
Em uma série de experimentos in vitro com culturas de células humanas, foi testada a ação antiviral dos dois compostos, tanto em separado como em conjunto no complexo proteico. Foram observados os efeitos dos compostos em células humanas (para ajudar a prevenir a infecção pelo vírus) e diretamente no vírus da hepatite C.
O genoma do vírus da hepatite C é constituído de uma única fita de RNA, o ácido ribonucleico, que é uma cadeia simples de nucleotídeos que codifica as proteínas do vírus.
“Esse vírus invade a célula humana hospedeira para se replicar, produzindo novas partículas virais. Dentro da célula hospedeira, o vírus produz uma fita complementar de RNA, a partir da qual serão produzidas moléculas de genoma viral que constituirão as novas partículas”, disse Gomes Jardim.
“Nosso trabalho demonstrou que a fosfolipase tem a capacidade de se intercalar com o RNA dupla fita, intermediário de replicação do vírus, inibindo a produção de novas partículas virais. A intercalação reduziu em 86% a produção de novos genomas virais, quando comparada ao que ocorre na ausência da fosfolipase”, disse.
Quando o mesmo experimento foi feito usando-se a crotoxina, a redução na produção de partículas virais foi de 58%.
A segunda etapa do trabalho consistiu em verificar se os compostos conseguiriam bloquear a entrada do vírus nas células humanas em cultura. Nesse caso, os resultados foram ainda mais satisfatórios, pois a fosfolipase inibiu em 97% a entrada do vírus nas células. Já o uso da crotoxina reduziu a infecção viral em 85%.
Por fim, foi testado um segundo composto isolado do veneno de cascavel, a crotapotina. Muito embora não se tenha verificado efeitos para impedir a entrada do vírus nas células humanas nem a sua replicação, a crotapotina agiu em outro estágio do ciclo viral, reduzindo em até 78% a saída das novas partículas virais das células. No caso da crotoxina, a saída das partículas foi inibida em 50%.
Segundo os pesquisadores, os resultados dos experimentos demonstram que a fosfolipase e a crotapotina agindo isoladamente tiveram melhor resultado do que em associação.
Flora brasileira
O segundo artigo sobre a ação de compostos químicos contra o vírus da hepatite C não partiu do veneno de nenhum animal, mas de compostos naturais da flora brasileira. O estudo, também com apoio da FAPESP, CNPq, Fapemig e Royal Society (Newton Fund), teve resultados publicados na Scientific Reports.
Os autores testaram o potencial antiviral dos flavonoides de uma planta conhecida como amendoim-bravo (Pterogyne nitens). Flavonoides são compostos encontrados em frutas, flores, vegetais em geral, mel e também no vinho.
Foram isolados dois flavonoides presentes nas folhas do amendoim-bravo: a sorbifolina e a pedalitina. O trabalho foi conduzido pelo professor Luis Octávio Regasini no Laboratório de Química Verde e Medicinal na Unesp de São José do Rio Preto.
Os flavonoides foram investigados de forma idêntica aos compostos do veneno de cascavel. Foi testada a ação antiviral dos dois compostos, em células humanas infectadas com o vírus da hepatite C e em células não infectadas.
“A sorbifolina bloqueou a entrada do vírus nas células humanas em 45% dos casos. Já a pedalitina obteve um resultado mais promissor, bloqueando em 79%. O experimento foi feito com dois genótipos do vírus da hepatite C, o genótipo 2A, que é o padrão para todos os estudos, e o genótipo 3, que é o segundo mais prevalente no Brasil. Nos dois casos, a ação antiviral dos flavonoides foi equivalente”, disse Gomes Jardim.
Na outra ponta do ciclo viral, os flavonoides não apresentaram nenhum tipo de ação antiviral no processo de replicação das partículas virais, nem os impediram de sair da célula infectada.
“Os flavonoides de amendoim-bravo estão entre os cerca de 200 compostos testados, que foram isolados de plantas brasileiras ou sintetizados com base em estruturas naturais pelo professor Regasini”, explicou Rahal.
“Os dois flavonoides foram testados contra o vírus da hepatite C porque já haviam demonstrado possuir efeitos antivirais em experimentos com o vírus da dengue”, disse. Os vírus da dengue e da hepatite pertencem à mesma família de vírus, chamada Flaviviridae.
O artigo Multiple effects of toxins isolated from Crotalus durissus terrificus on the hepatitis C virus life cycle (doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0187857), de Jacqueline Farinha Shimizu, Carina Machado Pereira, Cintia Bittar, Mariana Nogueira Batista, Guilherme Rodrigues Fernandes Campos, Suely da Silva, Adélia Cristina Oliveira Cintra, Carsten Zothner, Mark Harris, Suely Vilela Sampaio, Victor Hugo Aquino, Paula Rahal e Ana Carolina Gomes Jardim, pode ser lido em http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0187857.
O artigo Flavonoids from Pterogyne nitens Inhibit Hepatitis C Virus Entry (doi:10.1038/s41598-017-16336-y), de Jacqueline Farinha Shimizu, Caroline Sprengel Lima, Carina Machado Pereira, Cintia Bittar, Mariana Nogueira Batista, Ana Carolina Nazaré, Carlos Roberto Polaquini, Carsten Zothner, Mark Harris, Paula Rahal, Luis Octávio Regasini e Ana Carolina Gomes Jardim, pode ser lido em www.nature.com/articles/s41598-017-16336-y.
Os pesquisadores publicaram anteriormente em 2017 artigo no Journal of General Virology em que descreveram a ação de outro alcaloide, o Fac4 (sintético da dibenzoxazepina). O composto também apresentou potencial contra o vírus da hepatite C. Em testes in vitro, o alcaloide inibiu em até 92% a replicação do vírus.
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