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Palestra da antropóloga Manuela desperta sociedade manauara para o debate do direito da propriedade intelectual indígena /ASSESSORIA
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MUSA
MANAUS, Amazonas – A noção de cultura já ocupou lugar central nas pesquisas antropológicas, mas foi praticamente abandonada a partir dos anos 1990. Abandonada pelos antropólogos, entenda-se bem. O termo hoje faz parte do vocabulário (e dos estudos) de pesquisadores de áreas como a biologia e também dos integrantes de comunidades tradicionais – justamente aqueles cujas culturas foram descritas pelos antropólogos no passado.
Mas, ao falarem em cultura, estariam todos se referindo à mesma idéia?
Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga integrante do Conselho de Administração do Musa e referência em questões indígenas, abordou o tema em palestra no Auditório Rio Solimões, da Ufam, dia 8 de abril. Alunos, professores, jornalistas e pesquisadores de diversas áreas de atuação se reuniram para ouvi-la sobre o assunto, que permeia os diversos artigos reunidos em seu último livro, Cultura com aspas.
— A partir de 1990 virou tabu falar em cultura na antropologia. Se dizia, entre outras coisas, que o que se chamava de cultura podia ser visto como um artefato, um produto da própria pesquisa antropológica —, afirmou a pesquisadora.
— Hoje estamos em momento paradoxal em que a antropologia parou de falar de cultura e todo mundo em volta está usando esse termo—, completou.
Reflexão, dia-a-dia e propriedade intelectual
Para Carneiro da Cunha há uma distinção fundamental a ser feita entre cultura e o que chama de cultura com aspas. “Aspas significa uma noção reflexiva, nesse caso, o uso reflexivo da noção de cultura. Só que junto com esse uso reflexivo continua havendo essa coisa invisível que a gente faz todo dia e que é a nossa cultura, a cultura sem aspas”, diz.
Segundo a pesquisadora, não se trata de um embate entre as noções de cultura, mas sim de perceber que ambas convivem e que essa convivência tem reflexos na vida prática. Carneiro da Cunha lembrou o caso de um senhor da etnia Yaminawá que, em meio à discussão sobre os direitos indígenas sobre os resultados do uso do conhecimento tradicional por outras pessoas, disse: “Oni [como chamam a Ayausca] não é cultura”.
— Acho que o que aquele senhor estava apontando é que essa noção reflexiva de cultura leva a uma coletivização daquilo que, na cultura sem aspas, é sujeito a um monte de deveres. Ou seja, não é todo mundo que pode preparar o Oni, não é todo mundo que pode bebê-lo. A cultura com aspas transforma o que é direito de alguns em algo que é de todo mundo.
A questão toma rumos jurídicos quando se pensa na repartição dos benefícios obtidos a partir do uso do conhecimento tradicional. Segundo Carneiro da Cunha, os indígenas estão “jogando do lado mais tradicional”, ou seja, defendem o direito à propriedade intelectual coletiva sobre esse conhecimento – em oposição à proposta de que sejam considerados de domínio público.
— Eu, pessoalmente, como cidadã, sou a favor do domínio público, mas tenho que entender que as sociedades indígenas estão reivindicando a propriedade sobre esse conhecimento. Acho que se eu fosse indígena eu também faria isso — finalizou.