Quarta-feira, 7 de janeiro de 2015 - 12h20
O economista e sociólogo Paul Singer, titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) desde que esta foi criada, em 2003, no primeiro governo Lula, é um estudioso da economia solidária e se tornou uma das referências internacionais no tema, com vários livros publicados.
Apesar de o nome ter sido criado no Brasil, economia solidária é um movimento que ocorre no mundo todo e diz respeito à produção, consumo e distribuição de riqueza com foco na valorização do ser humano. A sua base são os empreendimentos coletivos (associação, cooperativa, grupo informal e sociedade mercantil).
Hoje, o Brasil conta com mais de 30 mil empreendimentos solidários, em vários setores da economia, com destaque para a agricultura familiar. Eles geram renda para mais de 2 milhões de pessoas e movimentam anualmente cerca de R$ 12 bilhões.
Nessa entrevista, Singer mostra como o movimento surgiu no Brasil, inicialmente para combater a miséria e o desemprego gerados pela crise do petróleo na década de 1970, e se transformou em um modelo de desenvolvimento que promove não só a inclusão social, como pode se tornar uma alternativa ao individualismo competitivo das sociedades capitalistas.
Entrevista concedida a Joel dos Santos Guimarães e Paula Quental:
Brasil Debate – Quando e como surgiu a economia solidária no Brasil?
Paul Singer - Ainda sem esse nome, a economia solidária surgiu no Brasil no bojo da mais terrível crise pela qual o País passou desde Pedro Álvares Cabral. Foi a crise dos anos 70, que atingiu toda a América Latina, resultado do choque do petróleo. Os países não produtores de petróleo ficaram com dívidas enormes. Tiveram que comprar petróleo a preços cinco vezes maiores dos que pagavam antes da crise. E o Brasil foi um dos que mais se endividaram. Não tinha opção. O País já estava no processo de abertura, mas o regime estava sem nenhuma preparação para enfrentar o desemprego, que atingia milhões de brasileiros. Esse era o quadro.
A economia solidária foi uma alternativa para enfrentar o desemprego, a fome e a miséria que atingiram milhões de brasileiros?
Paul Singer – Foi isso mesmo. Quem tentou fazer isso de uma forma correta foi a Igreja, através da Cáritas, que começou a organizar os desempregados para que eles voltassem a viver, a ganhar. Isso acabou sendo o impulso inicial para a economia solidária no Brasil. Portanto, a semente da economia solidária foi plantada nos anos 80 por uma ação extremamente adequada, e no momento certo, da Cáritas. Alguns anos depois, o esforço da Cáritas foi secundado pelos sindicatos e pelas universidades. A essa altura eu já estava envolvido.
Qual foi o papel dos sindicatos, nesse início da economia solidária no Brasil?
Os sindicatos viram que os trabalhadores de empresas que iam falir – e muitas faliram nessa época – poderiam arrendar a massa falida, preservar a empresa e, portanto, seus próprios empregos. Os primeiros casos causaram muita sensação: fábricas sem patrões. Logo mais, isso se tornou um modelo. Surgiu a Anteag (Associação de Empresas Recuperadas), que se especializou nisso, a partir do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos). Então, foi o início da economia solidária no Brasil. Os sindicatos apoiaram seus trabalhadores na formação de cooperativas de trabalho.
Os trabalhadores assumiram a direção dessas empresas falidas e as recuperaram?
Sim, assumiram a direção das empresas. Eles passaram a ser trabalhadores sem patrão, ou trabalhadores autoempregados coletivos ou sociais. Sempre associados.
E qual foi o resultado disso?
Centenas de empresas recuperadas no Brasil pelos seus próprios trabalhadores, mais de mil. A maior da América Latina administrada por trabalhadores é a Uniforja (Cooperativa Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia), que fica em Diadema.
Isso mostrou, na prática, a capacidade de gestão do trabalhador, de administrar com sucesso uma fábrica, coletivamente e sem patrões?
É preciso lembrar que, do ponto de vista capitalista, o trabalhador é alguém que cumpre tarefas. Ele não tem nenhuma participação na gestão, muito menos conhece os problemas do negócio. Os donos da empresa só divulgam o que lhes parece vantajoso. Portanto, os trabalhadores não têm aparentemente nenhuma capacidade de gerir uma empresa. A realidade mostrou o contrário. As empresas recuperadas pelos trabalhadores levam uma média de 2, 3 meses para voltar à plena atividade. Não mais que isso. É surpreendente.
A história é mais o menos o seguinte: quem não se lembra do Betinho (Herbert José de Sousa)? Sociólogo e ativista social, militante político que liderou o “Natal sem Fome”, mobilizou milhões e milhões de pessoas no Brasil. Isso também está na história da economia solidária.
De que forma?
Começou-se a perceber que era preciso fazer alguma coisa direta contra o desemprego. Como a campanha do Betinho avançou bem, tomamos a decisão de nos reunirmos nos anos 1990 (92 e 93) para lutar diretamente contra o desemprego, fomentando a economia solidária, que ainda não tinha esse nome. Incentivando a autoiniciativa econômica de trabalhadores associados.
Inclusive a campanha do Betinho foi muito apoiada pela Igreja. Ele mesmo era um católico, um cristão socialista. Militante da AP (Ação Popular, organização da esquerda cristã). Bem, esse foi o passo decisivo para a criação das incubadoras e cooperativas populares. Não surgiram imediatamente, mas não demorou muito. A primeira cooperativa foi criada no Rio de Janeiro, creio que em 1994, e agiu especificamente na Maré (Complexo da Maré). As incubadoras tecnológicas e cooperativas populares foram decisivas para o desenvolvimento da economia solidária no Brasil.
A origem dessa primeira incubadora vem da situação trágica dos trabalhadores daquelas favelas, que ficam ao redor do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). E junto ao Instituto Oswaldo Cruz existe a Faculdade Nacional de Saúde Pública. Basicamente, as pessoas nas favelas viviam do tráfico e das lutas contra os traficantes… As balas passaram a voar e atingir os prédios da faculdade. Chegaram a cogitar de tirar o Oswaldo do Cruz de lá, mas os próprios professores tomaram a iniciativa maravilhosa: “Vamos pensar um pouco antes de fazer essa transferência”. Eles foram às favelas ver o que estava acontecendo e descobriram que 80% dos favelados, dos chefes de família, não tinham trabalho. Uma situação desesperadora e o tráfico era a única alternativa que lhes restava.
Os professores se reuniram e discutiram então o que fazer. O fato é que eles acharam que cooperativa seria a solução. Então entraram em contato com os vizinhos e sugeriram que formassem uma cooperativa de trabalho na própria instituição. E até hoje, eu acho, é assim. Os homens passaram a ter uma atividade e as mulheres também, em função daquele acordo.
E como o senhor entra nessa história?
Havia professores de Campinas, eu pela USP, mas não éramos muitos. Nós começamos a estudar o assunto. Em 1995, fizemos a primeira reunião brasileira do que viria a ser economia solidária, na PUC de São Paulo. A imprensa não dava nada disso, como até hoje. O MST fazia economia solidária sem dar esse nome. O Gonçalo Guimarães que até hoje dirige a mais antiga incubadora do Brasil, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, também. Vieram umas 30 pessoas e fui surpreendente.
O MST já havia conseguido assentar muita gente e em 1983 já havia decidido que em todo assentamento haveria cooperativas. Eles foram a essa reunião na PUC contar essa história. O MST tinha apoio da Cáritas, que o ajudou a desenvolver a agroindústria nos assentamentos.
A Cáritas brasileira faz parte de uma rede de Cáritas no mundo inteiro e ela recolheu muitas contribuições das Cáritas europeias, dos Estados Unidos, porque a crise lá já estava superada, mas aqui não. Eles tinham recursos e os usaram para promover a economia solidária, que não tinha esse nome ainda. O nome surgiu durante a campanha eleitoral de 1996 para a prefeitura de São Paulo. A candidata do PT foi a Luiza Erundina, que acabou para o candidato do Paulo Maluf, o Celso Pitta.
Fui secretário de planejamento do governo dela quando o desemprego atingiu o auge, naquele complicada política do (ex-presidente Fernando) Collor. Havia 1,6 milhão de desempregados em São Paulo. Sem o apoio dos empresários, o que sobrou dos nossos esforços foi uma importante cooperativa de catadores de lixo, que até hoje existe. Vieram as incubadoras, o MST, a CUT, ONGs. Eram movimentos sociais se organizando em torno de um objetivo comum.
Fizemos essa proposta de organizar os desempregados em cooperativas ao comitê do programa da campanha da Luiza Erundina, dirigido pelo Aloizio Mercadante. Ele acatou e perguntou: Singer como é você chama esse treco aí que você está propondo? Respondi: nem pensei nisso. Aí ele me perguntou se não queria chamar de economia solidária. Na hora percebi que era o melhor nome possível.
Até então ninguém havia usado esse nome?
Quem começou a escrever sobre economia solidária, mas com nome semelhante, economia de solidariedade, foi o chileno Luís Razeto, professor de economia aposentado. Mas só o conheci em 2008. Eu soube dele depois que a gente já tinha posto isso aí em marcha. Quem me apresentou a ele foi o Cláudio Nascimento, militante na época da ditadura, que foi exilado na Europa, e teve contato por lá com um movimento como o da economia solidária, mas não com esse nome. Descobrimos mais tarde que a economia solidária era praticada nos Estados Unidos, a partir do microcrédito, e as universidades americanas tiveram um papel importante nisso.
Como a economia solidária foi adotada de forma ampla pelo PT, a ponto de ganhar uma secretaria própria, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes)?
Em 1991, com o desaparecimento da URSS, houve o desaparecimento do chamado socialismo existente – mas que de socialismo não tinha mais nada. Acabou a ideia de comunismo, e isso repercutiu no PT. O partido tinha de mudar e o socialismo era a proposta do PT desde a sua fundação. Isso causou uma reação forte nas bases operárias, camponesas etc. Elas não queriam nem ouvir falar em jogar fora o socialismo. Tinham toda razão, esse socialismo fracassou, mas não quer dizer que outras tentativas não possam ter sucesso.
Em meio à chamada crise mundial do socialismo, o Lula deu mais uma vez prova do seu gênio. Procurou o intelectual mais importante do PT, o professor Antonio Candido de Souza, e pediu que ele organizasse uma discussão em profundidade sobre o socialismo, porque a discussão poderia levar a uma divisão do PT. Isso foi por volta de 93. Vários intelectuais participaram. A economia solidária não era muito conhecida na época, mas organizamos debates inclusive sobre esse tema. Depois, em debates sobre desemprego, o PT entendeu que a economia solidária poderia trazer respostas para a questão e o partido assumiu o tema. Foi depois de todos esses debates que Lula colocou a economia solidária no programa dele.
Por que a Senaes faz parte do Ministério do Trabalho e Emprego?
A Senaes foi criada em 2003, quando o Lula tomou posse pela primeira vez. A Senaes faz parte do Ministério do Trabalho e Emprego porque a economia solidária se reconhecia como parte do movimento operário. O MTE é um ministério de proteção ao trabalhador, portanto parceiro dos sindicatos e de todas as formas de organização da classe trabalhadora. Nós somos uma secretaria dos movimentos sociais. Uma das coisas que me deixam orgulhoso é que os principais movimentos sociais do Brasil hoje estão na economia solidária. Não é que apoiem de fora, fazem economia solidária. E as mulheres são a vanguarda da economia solidária, no Brasil e em outros países.
A criação da Senaes foi fundamental para que o País tivesse uma política pública de economia solidária?
A economia solidária só existe no Brasil todo, acredito, por causa da secretaria. E do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, nosso grande parceiro. Sem o Fórum não tínhamos avançado. Ele foi criado junto com a secretaria, somos irmãos gêmeos. Uma grande parte das políticas em economia solidária surgiu por meio do Fórum. O próprio Fórum foi fomentando a criação de fóruns estaduais e hoje há ainda centenas de fóruns municipais. Mais da metade dos estados têm hoje leis de economia solidária, nós temos convênios com eles e com centenas de municípios.
O senhor vê a economia solidária como solução para a miséria e também alternativa real à economia capitalista?
Sim, é uma alternativa. As raízes da economia solidária estão lá atrás, com Robert Owen, considerado o pai do socialismo e um dos fundadores do cooperativismo, que foi administrador de uma grande tecelagem. Ele reduziu as jornadas de trabalho (no século 18), tirou as crianças das fábricas. Foi realmente um humanista e mestre de Marx e Engels. Ele criou toda uma organização para defender o socialismo e foi o primeiro grande líder da CUT da Grã-Bretanha, a primeira grande central sindical do mundo. Os trabalhadores partidários de Owen inventaram a autogestão. O princípio fundamental era a democracia, ninguém mandava em ninguém. Todo mundo, homem, mulher, jovem, velho. Isso vale para as cooperativas até hoje. No mundo, 1 bilhão de pessoas participam de cooperativas, segundo dados da Aliança Cooperativa Internacional. E cooperativa não é só cooperativa de trabalho. As cooperativas que têm mais sócios chamam-se cooperativas de crédito e são bancos cooperativos. Nós temos mais de mil no Brasil hoje.
A economia solidária é uma volta às origens do socialismo? Outra economia, sem patrões nem empregados, mas com trabalhadores solidários?
Sim, essa é a minha tese e não é utopia. Está sendo praticada. Em pelo menos 200 países. No Brasil, a característica da economia solidária é a presença de muitas cooperativas. Na prática, nós somos um exemplo de que a economia solidária é aplicação do cooperativismo.
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