Terça-feira, 2 de janeiro de 2018 - 16h50
“A Amazônia está em disputa numa batalha covarde e desonesta”, denuncia em carta-aberta a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam). O texto divulgado no dia 29 de dezembro recorda acontecimentos recentes de violência contra os povos da região e implicações de fatores políticos para o meio ambiente. “Enquanto os gananciosos das empresas nacionais e multinacionais, disputam suas terras e suas riquezas naturais, os povos da Amazônia tombam sob o jugo da injustiça”, lê-se em um trecho.
A carta é assinada pelo arcebispo emérito de São Paulo (SP), cardeal Cláudio Hummes, que é presidente da Repam e da Comissão Episcopal para a Amazônia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Também assina o texto o bispo emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, que preside o comitê brasileiro da Rede e é secretário da Comissão para a Amazônia.
“Apesar de tanta violência e numerosas denúncias, ainda se constata uma imperdoável negligência por parte do Estado, que nesses conflitos não defendeu suficientemente as vítimas e, em alguns casos, assumiu até o papel de agressor, a favor da concentração de terras ou da instalação de grandes projetos com irreversíveis e desastrosas consequências para o tecido social da região e o meio ambiente”, aponta o texto.
Para a Repam, a falta de investigações e a impunidade na maioria dos crimes cometidos na Amazônia confirmam reforçam novas perspectivas de violência e agressão. O posicionamento é de continuidade na atuação ao lado das igrejas locais e da sociedade civil, “fortemente preocupada com o cenário de crescente violação dos direitos e da grande casa comum, do lar que Deus em seu infinito amor criou para todos nós”.
Leia a carta na íntegra:
Brasília, 29 de dezembro de 2017
Tanta violência na Amazônia, mas a Vida, Dom de Deus, é mais forte!
Carta Aberta da Rede Eclesial Pan-Amazônica
A Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) anuncia com esperança a encarnação de Deus nas terras Amazônicas e denuncia com indignação os sinais de morte e opressão do Povo de Deus que impedem o nascimento do Menino Jesus na Amazônia.
A atual conjuntura política da região revela o distanciamento de muitas lideranças políticas dos ensinamentos e preceitos do Deus da justiça. Muitos mergulharam na lama da corrupção e se esqueceram do povo e das suas expectativas. Permitem que a Amazônia seja uma moeda de troca nas tramas políticas enquanto engordam seus bolsos às custas dos recursos públicos, de propinas e subornos traindo a confiança do povo que os elegeu.
A Amazônia está em disputa numa batalha covarde e desonesta. Enquanto os gananciosos das empresas nacionais e multinacionais, disputam suas terras e suas riquezas naturais, os povos da Amazônia tombam sob o jugo da injustiça. Índios, camponeses, seringueiros, quilombolas, os povos da floresta reagem e colocam-se diante dos grilhões da destruição da sua nhandereko-há, sua casa comum. Com coragem e distinção, enfrentam os exploradores da madeira, da mineração, do agronegócio e dos recursos naturais. É exemplar e paradigmática a resistência frente a projetos públicos e privados de mineração na Amazônia. Temos os frutos desta luta como a vitória da sociedade civil organizada no caso da Reserva de Cobre e Associados (Renca), no Amapá e Pará, ou a suspensão pela Justiça Federal da licença de instalação para a mineradora canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu, no Pará.
Em muitos casos, porém, os povos da Amazônia enfrentam aqueles que destroem as florestas e envenenam os rios e se opõem aos grandes latifundiários apenas com seus corpos que trazem na pele as marcas da violência. A cada dia representantes dos povos da floresta estão tombando numa luta desigual.
Está em curso uma ofensiva anti-indígena, comandada pela bancada ruralista com apoio contundente da parte dos poderes Executivo e Judiciário que se concretiza no não cumprimento dos direitos constitucionais a demarcação de seus territórios e a possível liberação de arrendamento de suas terras para o agronegócio, inviabilizando seu modo de vida tradicional.
Preocupa-nos a realidade dos povos que vivem em situação de isolamento e risco nos estados do Acre, Amazonas, Pará, Maranhão, Rondônia e Mato Grosso. Os cortes orçamentários do governo federal comprometeram as ações de fiscalização e proteção dos seus territórios, impondo-lhes à condição de vítimas de um provável processo de genocídio. Neste ano, circularam informações e denúncias de um provável massacre de indígenas no estado do Amazonas e que este foi praticado por garimpeiros, caçadores e madeireiros. Os fatos precisam ser investigados. Urge sustar o processo de expropriação territorial e dizimação dos habitantes originários deste país.
Dados do Relatório “Violência Contra Povos Indígenas do Brasil” coletados no ano de 2016 e lançado neste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta que violência contra povos indígenas aumentou. Cresceram os casos de homicídio, suicídio e mortalidade infantil.
O ano de 2017 encerra-se com um saldo sem precedentes de mortes de camponeses, homens, mulheres e crianças. Os conflitos acirraram-se e se espalharam por todos os cantos da Amazônia.
No mês de março foi morto o ex-vereador Elpídio, no município de Colniza (MT). Até hoje sem resposta da justiça. No dia 19 de abril, jagunços encapuzados, contratados por fazendeiros, atacaram o assentamento da gleba Taquaruçu do Norte no município de Colniza, resultando em pelo menos nove mortes de camponeses. Colniza encerra o ano com o assassinato de seu prefeito. “A democracia foi ferida de morte”, comenta o bispo da Diocese de Juína, dom Neri José Tondello. “Colniza continua nas manchetes entre os municípios mais violentos do país. Parecemos terra de ninguém. Terra sem Lei. Terra sem Estado de Direito”, denuncia o bispo.
No mês de maio, o acampamento Padre Josimo, na Comunidade Tauá – município de Carrasco (TO), foi queimado numa reintegração de posse movida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), contra 500 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Em 24 de maio, os acampados na Fazenda Santa Lúcia, localizada no município de Pau D’Arco, no Estado do Pará, foram surpreendidos na madrugada por uma operação policial de despejo envolvendo pistoleiros e agentes da segurança privada que torturaram e mataram dez camponeses de forma brutal. Dezessete policiais responsabilizados pelo massacre chegaram a ser presos, mas o Tribunal de Justiça do Pará concedeu liberdade a nove policiais dos presos no último dia 18 de dezembro.
Os conflitos socioambientais espalharam-se por outros municípios do Amapá, onde camponeses e indígenas sofrem com o envenenamento de roças agroecológicas na região do Maruanum em Calçoene, município controlado por empresa madeireira que tem promovido a destruição de ramais de acesso às propriedades, queima de casas e roças.
No dia 14 de novembro, vinte e um camponeses da Comunidade Gostoso, município de Aldeias Altas, no Maranhão, foram detidos pela polícia militar e levados para a delegacia porque resistiram à ação do fazendeiro e de uma empresa que atuam no setor sucroalcooleiro. Trata-se de área de terra devoluta ameaçada pela grilagem que se espalha por outras regiões como na comunidade sertaneja de Bem Feito, município de Formosa da Serra Negra, onde as famílias vêm sofrendo ações de grilagem. Parte da terra, com mais de 970 hectares, vem sendo apropriada por grileiros da região que contam com a colaboração de jagunços e pistoleiros. No dia 19 de agosto, uma emboscada frustrada foi armada contra 4 agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Na ilha de São Luís, a comunidade tradicional de pescadores e marisqueiros de Cajueiro está sendo ameaçada de expulsão e foi intimidada por milícias armadas, a fim de beneficiar o projeto de instalação de mais um terminal portuário privado. O projeto faz parte da região do Matopiba, que pretende destinar ao cultivo extensivo da soja, 73 milhões de hectares distribuídos pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Na manhã do dia 1º de dezembro, um grupo de cerca de 40 pessoas, liderado por um deputado estadual e pelo prefeito do município paraense Senador José Porfírio, impediu a realização do seminário “Veias Abertas da Volta Grande do Xingu” que acontecia no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). O seminário apresentava pesquisas e debates sobre os impactos socioambientais das atividades da mineradora canadense Belo Sun, na região já afetada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Em 7 de dezembro, pistoleiros armados feriram diversas pessoas e mataram uma das lideranças do Acampamento Boa Sorte, localizado na Linha Dois da área do Assentamento Flor do Amazonas, em Candeias do Jamari, município próximo a Porto Velho, em Rondônia.
No dia 14 de dezembro, 300 famílias do acampamento Hugo Chavez em Marabá (PA) foram despejadas violentamente, cumprindo decisão do juiz da Vara Agrária da cidade. Há temores que estejam sendo planejados outros 20 despejos desse tipo, numa região que há muito tempo é palco de graves conflitos gerados pela grilagem e a concentração de terras nas mãos de latifundiários e da empresa mineradora Vale.
O ano encerra-se com o desaparecimento, desde o dia 13 de dezembro, de três lideranças camponesas, dois homens e uma mulher, da ocupação Igarapé Araras, localizada no quilômetro 56 da BR-319, em Canutama, no Sul do estado do Amazonas, prelazia de Lábrea. Eles haviam recebido ameaças de morte por parte de requerentes, uma madeireira processada por grilagem de terra e destruição da floresta.
Frente a todos esses fatos, houve manifestações públicas dos diversos movimentos sociais e socioambientais que atuam em defesa dos camponeses e dos povos indígenas da região, de instituições como o Ministério Público ou algumas universidades, de pastorais e organismos da Igreja Católica. Apesar de tanta violência e numerosas denúncias, ainda se constata uma imperdoável negligência por parte do Estado, que nesses conflitos não defendeu suficientemente as vítimas e, em alguns casos, assumiu até o papel de agressor, a favor da concentração de terras ou da instalação de grandes projetos com irreversíveis e desastrosas consequências para o tecido social da região e o meio ambiente.
A falta de investigações e a impunidade na maioria dos crimes cometidos na Amazônia confirmam essa hipótese e reforçam novas perspectivas de violência e agressão.
A Rede Eclesial Pan-Amazônica continua atuando ao lado das igrejas locais e da sociedade civil, fortemente preocupada com o cenário de crescente violação dos direitos e da grande casa comum, do lar que Deus em seu infinito amor criou para todos nós.
A fé profética de muitas testemunhas da Amazônia soma-se à certeza da encarnação de Deus no meio dos pobres. O nascimento de Jesus num estábulo, fora da cidade, na extrema pobreza, já é a opção silenciosa de Deus pelos pobres e excluídos, pelos que o mundo considera supérfluos e descartáveis (cf. DAp 65). Os pobres na sua condição de banidos do “banquete da vida” se tornam os prediletos de Deus.
A Esperança nunca morreu nem morrerá no coração dos povos da Amazônia. “O povo que andava em trevas viu uma grande luz; e sobre os que habitavam na terra de profunda escuridão resplandeceu a luz” (Is 9, 2). Todos os mártires da Amazônia e todas as testemunhas da Esperança vivas que continuam lutando por justiça, pelo respeito aos direitos humanos e pela defesa da casa comum são reflexo dessa luz que no menino nascido em Belém começou a iluminar o mundo.
Dom Cláudio Cardeal Hummes
Presidente da Repam e da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB
Dom Erwin Krautler
Presidente da Repam-Brasil e Secretário da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB
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