Segunda-feira, 6 de setembro de 2021 - 08h45
A imprensa tem memória curta. Faz parte da história
das redações de jornais esquecer os personagens que se envolvem em episódios
polêmicos logo que eles se afastam e ficam fora dos holofotes. Vez ou outra, os
repórteres lembram dos assuntos nas conversas nas mesas dos botecos.
Trabalhei em redação de 1979 a 2014 e não fui
exceção: também esqueci o nome de muita gente. Inclusive de pessoas que
denunciei no jornal. Mas os tempos mudaram. E as novas tecnologias colocaram a
história na nossa mão simplesmente apertando uma tecla do celular.
E as redes sociais estão aí ativas para não deixar
que nós jornalistas esqueçamos dos personagens que já foram o centro de grandes
rolos. Fiz esse nariz de cera para puxar o assunto sobre o qual vamos
conversar: a história do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, o “homem
da boiada”.
A história de Salles precisa ser reescrita. Ele
assumiu o Ministério do Meio Ambiente em 2019, no início do governo do
presidente Jair Bolsonaro (sem partido). E pediu demissão em junho de 2021,
após sangrar no cargo por vários meses.
A situação de Salles ficou insustentável depois que
o delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente da Polícia Federal (PF) do
Amazonas, apresentou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma notícia-crime contra
o então ministro, acusando-o de estar envolvido com o contrabando de madeira,
entre outras irregularidades — há matéria na internet. Posteriormente, dois
inquéritos foram abertos pela PF envolvendo Salles.
Depois que deixou o ministério, ele perdeu o foro
privilegiado e o seu caso foi para a Justiça Federal de primeira instância. No
início de agosto, deu uma entrevista à Rede TV dizendo que era inocente e que
foi vítima do “aparelhamento da PF”. A história de Salles vai muito além do
contrabando de madeiras raras para os Estados Unidos, entre outros crimes. Ela
precisa ser reescrita para nunca ser esquecida. Já temos um exemplo da história
de um personagem que foi ministro no atual governo que está sendo reescrita.
Trata-se do ex-ministro da Saúde e general da ativa
do Exército Eduardo Pazuello. Ele foi colocado no cargo por Bolsonaro para
alinhar o Ministério da Saúde com o negacionismo do presidente em relação ao
poder de contágio e letalidade da Covid. Pazuello transformou o negacionismo de
Bolsonaro em política do governo.
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 do
Senado, a CPI da Covid, esta fazendo as ligações da administração Pazuello com
a morte de 570 mil brasileiros pelo vírus e outros absurdos que aconteceram
durante a sua gestão, como a morte de pacientes nos hospitais de Manaus (AM) e
no interior do Pará por falta de oxigênio hospitalar. O relatório da CPI vai
contar a história do que aconteceu entre as quatro paredes do governo federal
durante a pandemia. E será para nós jornalistas uma fonte de informações
preciosas.
Por tudo que a CPI já apurou, Pazuello foi para
Bolsonaro a pessoa que implantou na Saúde o negacionismo do presidente como
política de governo. E o que nós jornalistas sabemos sobre os acontecimentos
entre as quatro paredes da administração de Salles no Meio Ambiente? Sabemos
que, a exemplo de Pazuello, Salles implantou como política de governo a
destruição dos órgãos de fiscalização do ministério, facilitou a vida dos
madeireiros ilegais e permitiu a entrada de garimpeiros nas reservas indígenas.
A maior vítima foi a Floresta Amazônica e os seus
povos indígenas. A imprensa estrangeira tem cobrado dos jornalistas brasileiros
trabalhos mais profundos sobre o que tem acontecido na floresta e com os povos
que lá vivem.
O que temos publicado são informações parciais.
Dificilmente haverá uma CPI para esclarecer o assunto. Então, como vamos fazer?
Apesar de toda a truculência de Salles, boa parte da rede de informações da
região formada por ONGs, religiosos e organizações indígenas conseguiu
sobreviver.
Essa rede pode nos informar sobre o que aconteceu
no atacado. O nosso maior problema é conseguir informações entre as quatro
paredes do Ministério do Meio Ambiente. Conheço profundamente a organização dos
madeireiros ilegais que operam na Amazônia e alguns grupos de garimpeiros. Eles
não têm um comando central. São grupos que se organizam para uma ação
específica — derrubar um mato ou garimpar uma jazida.
Disse ele na ocasião: “Vamos aproveitar e passar a
boiada”. Ninguém pode exigir do presidente Bolsonaro que coloque no Ministério
do Meio Ambiente um ecologista. Ele tem o direito de escolher quem ele quiser.
Só que aquele que assumir tem que respeitar a lei. Foi justamente isso que
Salles não fez. Essa é a história que precisamos contar.
Texto
publicado originalmente pelo blog Histórias
Mal Contadas.
______
Carlos Wagner é repórter, graduado em
Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero
Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles,
sete Prêmios Esso regionais.
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