Quarta-feira, 21 de agosto de 2019 - 07h05
É preciso olhar para cima para perceber a beleza grandiosa
do mulateiro (Calycophyllum sprunceanum), árvore cujo tronco esbelto se
direciona reto ao céu, como quem tem firmeza. Lá, sua copa resplandece. Seus
galhos espalham-se pelos lados, sem temer tomar espaço em meio às florestas de
um dos principais biomas do Planeta Terra: a Amazônia.
Todo ano, o mês de fevereiro chega junto com o gradual
avanço das águas transitórias da várzea, ecossistema alagável que mantém durante
cerca de metade do ano uma região inteira da floresta amazônica alagada. O
mulateiro e outras milhares de espécies formam a densidão de copas que cobre a
água da várzea, rica em nutrientes e uma das responsáveis pela biodiversidade
da área.
Agrônoma e professora da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU) há mais de 25 anos, Denise Santana foi impulsionada pela transitoriedade
da própria vida, até Tefé, no Amazonas, onde vai passar dois anos de sua vida
analisando espécies de plantas que vivem nas florestas alagadas.
A pesquisadora tem verdadeiro fascínio pelas sementes.
Pelos mistérios delas, principalmente.
Acredita que essas plantas, adaptadas ao vaivém da água,
podem ter uma relação mais complexa e que vai além do consenso estabelecido
pela comunidade científica de que a água serve apenas como ferramenta de
dispersão das sementes.
Entusiasma-se ao mostrar as dez diferentes espécies objeto
de seus estudos, que buscam provar que as plantas da várzea, além das mais
diversas formas, flores e mecanismos de sobrevivência, têm algo em comum:
memória.
Memória hídrica foi como denominou Denise, inspirada por
uma apresentação de iniciação científica que assistiu há mais de 20 anos de um
trabalho intitulado ‘a natação dos peixes’, nome que rendeu uma sala cheia de
espectadores - entre eles, a professora que, mais de duas décadas depois, se
inspirou naquele título de pesquisa para formular um termo acessível como, ela
acredita, a ciência deve ser.
A memória hídrica
O mulateiro, constatou Denise, decide dispersar suas
sementes apenas quando começa a cheia e a água começa a subir. Nela, as
pequenas sementes se transformam em plântulas que meses depois, com a seca, vão
fixar no solo e crescer para, como sua planta gestora, se espalhar no
alto.
“As plantas devem guardar memória do tempo em que a árvore
estava submersa. Caso contrário, só dispersaria suas sementes na seca. Ela sabe
que suas sementes vão sobreviver e até se desenvolver naquela condição”,
afirma.
A planta-mãe passa a informação para a semente, que se
transforma em plântula, que se transforma em planta-mãe. Como as estações do
ano e a água da várzea, o ciclo se repete.
Denise mostra plântulas do mulateiro: lembram pequenas
‘florestinhas’, como uma vegetação arbustiva.
Uma das plântulas no laboratório, germinada sob a areia e a
outra, sob a água. Esta última, um tanto mais forte, de raízes mais
sofisticadas. “Um sistema radicular mais desenvolvido”, define a cientista, que
acredita que mais do que agente de dispersão, a água pode ser essencial para o
desenvolvimento completo de algumas espécies da região.
A essencialidade da água ainda será posta à prova durante
as investigações, mas uma coisa é certa: as plantas desenvolveram mecanismos um
tanto sofisticados para sobreviverem em um ambiente como a várzea. Podem ter a
memória como explicação.
Sobrevivência na água
Espécies como o assacu (Hura crepitans), desenvolvem bolsas
de ar, que, de acordo com a pesquisadora, são o suficiente para a sobrevivência
da espécie durante o período de alagamento.
“É uma memória menos técnica porque conta a história de
vida da planta-mãe. Isso vem desse tempo de vivência na água. A semente não tem
o tempo suficiente para pensar numa estratégia boa para sobreviver nessas
condições. Ela guarda informações repassadas pela planta-mãe, que já passou por
aquilo, para sobreviver. São sementes com mais quantidade de cera, com bolsas
de ar, entre outras estratégias”.
Algumas sementes chegam a ficar submersas até a época da
seca, quando germinam na terra. “Já se a gente deixar qualquer outra semente
não aquática, como soja e milho, submersa, morre rápido”, afirma.
O tempo que a semente sobrevive dentro da água, de acordo
com a agrônoma, pode ser uma das evidências dessa memória. Afinal, se a semente
não ‘soubesse’ que a seca viria, não resistiria às bravas condições de falta de
oxigênio que faz outras espécies sucumbirem por anoxia.
Em suas expedições nas reservas de desenvolvimento
sustentável Mamirauá e Amanã, Denise conta com a ajuda de Mário, ribeirinho e
assistente de campo. Mário entende os gostos das plantas, e avisa sobre o que
sabe: “Louro-inamuí afunda, capitari flutua e a macarecuia gosta de época seca,
que é quando o fruto cai”. Denise considera de grande valia o conhecimento
tradicional compartilhado pelo comunitário e mantém com ele, como define, “um
canal permanente de escuta”.
Espécies com potencial madeireiro
A pesquisadora escolheu as espécies de seu estudo baseada
em suas potencialidades de manejo florestal. Os resultados das pesquisas também
irão servir de contribuição para a extração sustentável da madeira da Amazônia.
“Além do manejo florestal na região, nós não podemos
descartar a possibilidade de termos plantações comerciais dessas plantas”,
complementa.
A agrônoma também irá desenvolver um protocolo de
germinação de sementes sobre a água que será enviado para o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (Mapa), onde passará por um processo de validação. “O
ministério faz um teste com a plântula e com base naquilo que germinou, ele e
envia essa metodologia para laboratórios. Assim que for comprovada a eficácia,
então uma instrução normativa validando a espécie será publicada e permitirá o
comércio legal das sementes, à semelhança das culturas agrícolas”, explica.
Denise realiza suas pesquisas com o apoio do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
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