MARCOS TERENA (*)
BRASÍLIA — Nesse dia, não podemos deixar de olhar o Brasil que vamos descobrindo, ouvindo-o cantar “índio quer apito”, “todo dia era dia de índio”, mas também afirmar que, apesar de tudo, ainda somos 230 povos com línguas e culturas diferentes que cobram, do governo federal, a demarcação de todas as nossas terras, que somam apenas 12% do território nacional.
Houve um tempo em que o Brasil era 100% indígena, e fomos descobertos. Estranhos e curiosos homens, que sabiam sentir o vento e caminhar pelas águas com os sinais das estrelas, não tinham sensibilidade para o valor das águas, dos céus e da terra como nós. Seus olhos brilharam e não sabemos se porque viram os metais que usávamos, ou por causa de nossos corpos cobertos apenas por colares e urucum.
Para falar com seu Deus, num ritual que não entendíamos, mas que respeitamos, cortaram uma árvore e ergueram uma cruz. Então decidiram nos civilizar. Até hoje não compreendemos esses valores que agridem a terra com o desmatamento, o céu com a poluição e as águas com lixo atômico.
Até hoje não compreendemos como é possível construir a paz com armas de guerra. Não podemos compreender como é possível medir o valor dos seres humanos por meio de bens materiais, onde velhos e crianças não são prioridades, a não ser nas filas de embarque das empresas aéreas. Mas hoje vemos um Brasil de mitos e raízes que estão estampados nas pessoas com sotaques de Elba Ramalho, olhos de Maitê Proença, jeitão de Milton Nascimento e sorriso de Tainá, comendo maniçoba, sarapatel, arroz, feijão, churrasco e chimarrão.
A cada nascer do sol sobre a Avenida Paulista, Tamanduateí, Araguaia, Pantanal, Ipanema, Amazônia, Cerrado ou Mata Atlântica, surge o brilho da verdadeira luz: há sempre um pedaço de índio em você! Caminhamos com base nos rastros de nossos antepassados, por isso lutamos pela terra como uma luta pela soberania do Brasil.
Sonhamos com um Brasil forte e digno, onde a cultura, a língua e a espiritualidade sejam alicerces da nossa identidade. Sonhamos construir um pacto entre negros, brancos e índios, baseado no respeito mútuo, ao meio ambiente e à vida, pois o futuro existe, e assegurar um futuro melhor deve ser responsabilidade de nós todos. Ainapó nhakóe, boinun, poí caxé! (”obrigado, irmãos, até outro dia!” em aruak-terena).
O autor é índio pantaneiro, piloto de aeronaves. Foi coordenador-geral de Defesa dos Direitos Indígenas da Funai.
Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)