Todo ano a história se repete para quem cria gado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no Amazonas. Na época seca, quando o nível dos rios locais desce drasticamente, grandes porções de vegetação surgem onde antes havia apenas água. Esses “campos da natureza”, como são chamados localmente, extremamente ricos em nutrientes, são facilmente aproveitados por criadores para a alimentação do gado. A história é outra quando os rios estão cheios e pouca terra sobra acima da água. O gado, então, tem de ser movido para os “campos de terra firme”, espaços limitados que, sem o manejo adequado, tendem à rápida degradação do solo e à escassa disponibilidade de nutrientes para os animais.
O manejo de pastagens proposto pelo Pastoreio Racional Voisin (PRV) foi apresentado como solução para essa oscilação anual em oficinas realizadas entre os dias 25 e 27 de junho, na comunidade Monte Sinai, setor Lago do Amanã, na Reserva Amanã. As oficinas foram promovidas pelo Programa de Manejo de Agroecossistemas (PMA) do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). O evento reuniu 21 criadores de gado da reserva.
O Pastoreio Racional Voisin
No sistema PRV, idealizado pelo pesquisador francês André Voisin, o gado fica confinado em parcelas cercadas para pastar e, depois de consumir aquela pastagem, é movido para a próxima parcela, enquanto o solo e a vegetação da primeira se recuperam, aproveitando as fezes e urina deixadas no local.
Essa forma de criação dispensa a necessidade de se derrubar novas áreas de floresta para serem usadas para o pasto. Desde 2016, o PMA realiza oficinas sobre o método com criadores da Reserva Amanã.
“Já no início, o foco era a questão da alimentação, que estava influenciando em vários aspectos, da própria atividade produtiva até a conservação do ambiente. Era um ponto problemático, principalmente nessa mudança de pastagens, dos campos de natureza para os campos de terra firme”, conta Paula Araujo, técnica do PMA.
A princípio, três criadores foram escolhidos para a implementação do método. Por demonstrarem interesse na assessoria técnica e possuírem rebanhos de médio porte para a região – entre 20 e 40 cabeças, os três foram convidados a acompanhar o processo de implementação do PRV na Fazenda Ágda, unidade demonstrativa localizada em Tefé, no Amazonas. Na ocasião da primeira oficina, a fazenda tinha o solo e a vegetação degradados. Os criadores puderam acompanhar como, por meio da proposta do PRV, a área se recuperou e passou a ser produtiva.
A partir dessa primeira experiência, os criadores ribeirinhos Josué Feitosa, Miguel Freitas e Francisco de Lima começaram e planejar e implementar o PRV em seus sítios. O projeto prevê que a instalação dos sistemas PRV seja fomentada pelos próprios criadores, cabendo aos técnicos do Instituto Mamirauá orientar e acompanhar o processo.
“Eles vão implementando de acordo com os recursos que têm. Então uns já estão com as cercas mais estruturadas, outros nem tanto. Nosso objetivo foi que essas pessoas acompanhassem as mudanças na produção desde o começo da implementação das práticas do PRV”, explica Jerusa Cariaga Alves, pesquisadora do PMA.
Jerusa relata que a demanda de levar as oficinas para dentro da reserva partiu dos próprios criadores. “Era uma oportunidade de que os outros criadores, que não estiveram envolvidos no projeto no começo, acompanhassem desde o início o desdobramento desse processo. ”
As oficinas
Os três dias de oficinas na Reserva Amanã foram além do sistema PRV, trazendo aos criadores uma abordagem mais ampla do que é a agroecologia. “A agroecologia não observa apenas o aspecto técnico da produção, ela tem um olhar holístico sobre o agroecossistema, olhando também para questões culturais, sociais, políticas, econômicas, um panorama bem mais amplo sobre a atividade produtiva”, elucida Paula Araujo.
Durante as conversas, ficou claro que aqueles criadores já produzem de forma agroecológica, associando a criação de gado a outras atividades, como o cultivo de árvores frutíferas, que por meio das sombras de suas copas, proporcionam conforto térmico aos animais, ao mesmo tempo que aumentam a disponibilidade de nutrientes na área.
“Foi muito interessante porque nós vimos eles pertencendo àquilo. Nós tínhamos nosso cronograma, mas as conversas foram muito produtivas porque eles se viam naquele contexto, como produtores de gado com manejo agroecológico. Muitas das coisas que nós passamos, eles diziam que já faziam”, relata Jerusa Alves.
A apropriação do conhecimento pelos criadores, bem como o sucesso do método nos locais onde ele é implementado são maneiras de garantir que a técnica será reproduzida na reserva. “Isso é uma apropriação da tecnologia, mas vai além. Eles entenderam que o manejo de pastagens pode trazer resultados sem a necessidade da utilização de diversos insumos ou da derrubada de floresta. ”
“Em nenhum momento nós incentivamos o aumento no número de cabeças. Até porque eles não são só criadores. São pescadores e agricultores também”, explica a pesquisadora. “Nosso objetivo é melhorar a qualidade da produção e a qualidade do agroecossistema em que está inserida essa criação. ”
As ações de estímulo a um sistema sustentável de criação pecuária, realizadas pelo Instituto Mamirauá, contam com o investimento do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES). As atividades fazem parte do projeto Mamirauá: Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade em Unidades de Conservação (BioREC).