Terça-feira, 21 de janeiro de 2014 - 10h54
Viajantes de muitas léguas esgotados em seus cansaços, presos a uma fome indomável, acompanhados pela eterna desesperança, própria daqueles que não acreditam no pote de ouro ao fim do arco-íris, formam uma fila em linha quase reta, um a um, esfregando pés sujos e maltratados numa nova terra. Andança desmedida. Atrás da fila humana um castigante sol que teima a todo instante em permanecer aceso.
Caminham até o momento em que se deparam com um enorme e caudaloso rio que corta, bem ao meio, o vale de nome inegavelmente tupi, que para os infelizes, parece, momentaneamente, encantando.
Uma correria desenfreada de gente sedenta é o que se vê. Entre muitos atropelos, saciam a sede na margem do rio, deixando que a água volumosa lave por dentro e por fora a poeira do destino.
Nos dias que se seguem os maltratados migrantes vão reencontrando suas forças ao ponto de se sentirem os novos donos da terra, armando barracas e planos para ali se constituírem. A exemplo de outros povos, acreditam que é possível fazer nascer neste cantinho, nas margens do rio a sua descendência, e certamente anos depois serem lembrados como os iniciadores de um novo e grande povoamento, estando nas páginas dos livros de história, tal qual a civilização chinesa que nascera a beira do rio Amarelo, ou então a egípcia que pescou e plantou por causa do rio Nilo.
Entre o inverno e o verão, a chuva e o calor, mulheres foram parindo seus muitos filhos para assegurarem a posse eterna da terra, e quanto mais crianças espalhavam-se pelos cantos, maior vai ficando a dificuldade de alimentar tamanha gente. Os peixes, embora de grande importância no sustento da comunidade não saciavam plenamente a fome, assim num certo dia algumas famílias juntando os poucos pertences, mudando o olhar de migrante para definitivamente o de colonizador, foram se bandeando para a margem direita do rio, remando com braços e mãos até alcançarem o extremo desejado.
Separados agora, cada qual foi tocando a vida. Enquanto que na margem esquerda do rio o povo preocupava-se em esburacar a terra à procura de ouro e pedras preciosas, os da margem direita dedicavam-se ao plantio de uma raiz que logo apelidaram de mandioca, fazendo dela o alimento principal daquela região. Vale lembrar que dezenas de anos depois a iguaria foi também chamada de aipi, aipim, castelinha, uaipi, macaxeira, como também de mandioca-doce, mandioca-mansa, maniva, maniveira, chegando a alcunha de pão-de-pobre.
Mandioca cozida na floresta, em Sena Madureira (AC) /F.MELO
A mandioca em princípio era para acompanhar o peixe, no entanto, em razão da curiosidade humana, outros experimentos foram sendo feitos até que a comunidade, muito inspirada, conseguiu triturar a mandioca, inventando, assim, a farinha de mandioca. Nem é preciso dizer que tal invenção mudou por completo a vida do povoado da margem direita do rio.
Muitas farinheiras comunitárias foram criadas, facilitando, portanto, o surgimento da palavra produtividade, que século depois seria incorporada à literatura econômica e outras que tais. Os experimentos não pararam na fabricação da farinha, a partir dela foi inventado um quitute que para sempre mudaria o destino gastronômico da humanidade: a farofa. Assim, a comunidade fazia a farofa e a trocava por outros produtos como a carne de sol, o ovo, o tomate, que eram produzidos em outras localidades.
Por ocasião da comemoração dos muitos anos da fundação do povoado, os habitantes das duas margens se juntaram para promover uma grande festa, cabendo aos da margem direita o preparo da comilança. Imediatamente as pessoas foram elaborando farofas de diversas coisas: com banana, com castanha, cebola, ou com a couve, ovos, linguiça, e muito mais. Assim, muito mais gente passou a conhecer a farofa, sendo ela, assunto de mercadores, viajantes e romeiros.
Tal foi o sucesso que a presidente da associação dos moradores da margem esquerda, tomada por intenso sentimento de ciúme, proibiu a entrada da farofa na comunidade. Ela sabia que a margem direita estava prosperando graças ao farofeiro enquanto que a margem esquerda nada plantava, nada cultivava. Estava sim, fazendo de seu quinhão um imenso buraco sempre à procura de ouro.
A proibição criou uma grande revolta, pois a maioria do povo queria assegurar o seu direito de comer farofa, exigindo também uma explicação lógica para tamanho absurdo. Quanto mais pediam explicações, menos sabiam, nada fazia sentido. Os moradores da margem direita, solidários, acabaram por comprar a briga e assim, passaram a enviar às escondidas a iguaria, inaugurando-se o tempo da farofa clandestina.
A farofa muito rapidamente ganhou o país, não havia festa de casamento, batizado, inauguração de rua, que não fizesse parte do cardápio. Na verdade ela promoveu o aparecimento de um novo ritual cultural, pois na mesa de refeição cada pessoa come em seu próprio prato, está ali bem acomodado o arroz, o feijão, duas ou três generosas fatias de tomate bem vermelho, tal como uma tímida decoração em meio ao branco do arroz, talvez um bife ou um bom naco de peixe e folhas de alface, no entanto o mesmo não acontece com a farofa, porque não há espaço para ela no prato,
Não, ela é muito mais democrática, está no centro da mesa, cheirosa, saborosa, bem temperada e as pessoas, coletivamente, vão levando suas colheres para dentro da panela, derrubam por sobre a mesa, espirram na roupa do companheiro ao lado e a devoram sem sutilezas amadoras. A mesma colher que entra na boca é a que se serve da farofa, todos juntos, misturando as salivas e o óleo que restou da carne. Mas há os que nem de colher precisam, porque os cinco dedos juntos, curvados sobre a farofa são instrumentos de perfeição e completa harmonia para saciar o desejo farofista.
Produção de farinha em reserva extrativista de Guajará-Mirim (RO) /M.CRUZ
As farinheiras comunitárias trabalhavam dia e noite com uma produção nunca antes imaginada, que foi preciso que a associação dos moradores repensasse um meio de escoar tudo aquilo, se o mercado interno já estava conquistado deveria é ter um jeito de mandar para o estrangeiro.
Foi então que durante uma reunião da associação alguém comentou que há muitas léguas adiante outras comunidades estavam construindo portos graneleiros para exportação de grãos de tudo quanto é planta. As barrancas dos rios estavam tomadas de construções, um verdadeiro quintal de obras. Se os grãos davam certo, porque não tentar com a farofa? A reação dos participantes de imediato foi negativa porque aqueles portos davam o que falar. Um deles lembrou que até no estrangeiro já se comentava do assunto e a coisa não era nada boa.
Mas o problema de fato era o que os plantadores estavam fazendo com a floresta, um desmatamento doido só para plantar os grãos, os hectares de floresta devastada já passavam de um milhão e tantos. O desmatamento era ilegal, muito plantador era envolvido com grilagem e até tinha gente metida com trabalho escravo. Com a farofa, não. Tudo tinha que ser de primeira.
Como todo cuidado é pouco, foi-se planejando com calma o porto farofeiro, e depois, dia após dia, a margem direita foi sacudida por um frenesi de trabalhadores que sob a luz do sol ou da lua, irmanados pela fé de um amanhã de glória e prosperidade, puseram de pé dois grandes portos, sem ser preciso derrubar a mata, ou criar danos ambientais ao rio.
Hoje em dia é muito comum qualquer um que visite Paris, ir ao Le Grand Véfour, logo ali na 17, Rue de Beaujolais e ver no menu deliciosos pratos como o Ravioles de foie gras, crème foisonnée truffée, ao lado de uma boa e farta cumbuca de farofa de ovo e linguiça. Ou então, passar pelo Gordon Ramsay em Londres e pagar cento e trinta euros por um magnífico prato de farofa de banana.
De tão importante a farofa foi parar na internet, lá na Wikipédia estão dizendo que ela foi inventada no período colonial do Brasil, mas isto é pura ficção, ela vingou mesmo foi na esperteza criativa de valentes desbravadores, que às margens de um caudaloso rio esverdeado consolidaram, para sempre, a sua república da farofa.
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