Segunda-feira, 17 de agosto de 2015 - 00h10
João Peres (*)
Elefante Editora
Em São Paulo
O ex-governador de Rondônia, Valdir Raupp (PMDB), finalmente quebrou o silêncio sobre o episódio conhecido como “massacre de Corumbiara”. Em nota enviada ao saite G1, porém, ele se exime de responsabilidade pelas doze mortes ocorridas há exatos vinte anos, durante reintegração de posse na fazenda Santa Elina, no sul do estado, e deixa para a Polícia Militar a culpa pelo fato de a situação haver fugido ao controle.
Raupp não aceitou conceder entrevistas ao portal da Globo. Nos últimos vinte anos, o hoje senador tem evitado ao máximo ter contato com o assunto. Poucas vezes foi à região dos fatos, no Cone Sul rondoniense, e jamais visitou a Santa Elina. Quando o caso estourou, entre a madrugada e a manhã de 9 de agosto de 1995, enviou como seu representante o vice-governador, Aparício de Carvalho, e tomou um avião a Brasília, onde conseguiu demover o ministro da Justiça, Nelson Jobim, da ideia de que a Polícia Federal realizasse um trabalho de investigação paralelo ao dos órgãos estaduais.
Nos últimos três anos, procurei Raupp diversas vezes para uma entrevista. O assessor de imprensa sempre respondeu que seu cliente se reserva o direito de falar apenas sobre questões que lhe sejam favoráveis à imagem. Por isso, Corumbiara, caso enterrado foi impresso sem que se conhecesse sua versão a respeito.
Agora, talvez por temor às organizações da família Marinho, talvez por estar numa posição de fragilidade política, já que é um dos investigados pela Operação Lava Jato, Raupp quebra o silêncio. Mas de forma incompleta. Não se abriu ao exercício do contraditório, tão importante para o jornalismo e, neste caso, para que se fechem as explicações em torno de um dos piores conflitos agrários do Brasil pós-ditadura. A nota emitida por sua equipe não preenche lacunas fundamentais. Vamos analisá-la parte por parte.
“A situação era tratada como um ato normal de reintegração de posse e que com bastante antecedência, havia encaminhado uma equipe de técnicos do governo do estado para buscar uma solução negociada. Tive a informação que a situação estava sob controle. A ida de técnicos do governo ao local foi uma das medidas para evitar o conflito.”
De fato, Raupp mandou uma equipe de negociadores à ocupação. Seu então secretário-executivo, Édio Antônio de Carvalho, dirigiu-se ao acampamento na Santa Elina em 1º de agosto de 1995, acompanhado por representantes do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras de Rondônia (Iteron), além do deputado estadual Daniel Pereira, hoje vice-governador. A reunião com os líderes dos posseiros terminou com a promessa de que se encontraria uma área para o assentamento provisório das famílias. Foi a primeira e única rodada de conversas.
“Após o conflito, além das medidas para manter a segurança na região afetada pelo conflito, exonerei o então comandante da PM do estado, logo após o lamentável episódio.”
É verdade. O coronel Wellington Luiz de Barros Silva foi exonerado menos de uma semana após o caso. Mas, nesse ínterim, Raupp fez eco às explicações dadas pelo então comandante, que presumiu a inocência dos policiais e a culpa dos sem-terra pelas mortes. O então governador chegou a afirmar que entre os posseiros havia “atiradores de elite”, uma ideia que prevalece até hoje entre os policiais envolvidos no caso.
Além disso, o coronel foi demitido não pelo saldo sangrento da operação, mas pelos excessos retóricos – é um caso de peixe que morreu pela boca. “Taí uma resposta da nossa Polícia Militar para que pessoas não participem mais desses eventos. Os organismos do Estado e da União estão mobilizados para ajudar as pessoas que realmente precisam. Sem dúvida que a invasão deve acabar em nosso país”, afirmou Wellington, então, admitindo que não tinha provas sobre o suposto poder de fogo dos sem-terra.
“Não houve falhas no âmbito do governo do estado. Havia uma negociação em andamento entre as partes envolvidas coordenada por uma comissão governamental. O que ocorreu é que a situação fugiu do controle do aparato policial.”
Verdade: a situação fugiu de controle. Mas quem comanda o aparato policial? Constitucionalmente, o governador. Os sem-terra encaminharam a Raupp, no começo de agosto, uma carta alertando sobre a tensão crescente na Santa Elina e a possibilidade de uma tragédia. O deputado estadual Daniel Pereira também o havia alertado diversas vezes antes do início da operação.
Como Raupp não se abriu ao exercício da entrevista, privatizando uma narrativa pública, permanece sem resposta a grande questão em aberto do caso de Corumbiara: O que ocorreu na noite de 8 de agosto?
Após negociar com os sem-terra, o comandante da reintegração de pose, o então major José Ventura Pereira, disse à imprensa que ainda tentaria mais duas rodadas de conversas antes de proceder ao uso da força para retirar os sem-terra da área. Na madrugada seguinte, porém, deu início ao deslocamento das tropas em direção ao acampamento. A troca de tiros em campo aberto, primeiro, e uma série de abusos cometidos pelos policiais, depois, culminam nas doze mortes.
Raupp recebeu informações naquela noite? Foi ele quem tomou a decisão de que se desse cumprimento ao mandado de reintegração na madrugada seguinte? Ou foi uma medida que coube unicamente à corporação militar? Se a ordem coube ao governador, estaria ele devidamente informado sobre os perigos acarretados pela incursão no acampamento durante a noite? E as pressões dos fazendeiros locais? E a carta que o presidente da Sociedade Rural Brasileira, Roberto Rodrigues, enviara ao governador, pressionando pela expulsão dos ocupantes da Santa Elina?
São questões que só serão respondidas no dia em que o ex-governador, hoje senador, resolver conversar. Não importa que o tema lhe seja prejudicial à imagem: alguém que se mantém há tantos anos com mandatos garantidos pelo voto popular deve explicações à sociedade.
Reforço meu pedido por uma entrevista. O livro já está publicado, mas a história não está fechada. A Editora Elefante e eu nos comprometemos a divulgar na internet um novo capítulo que trate apenas da versão de Raupp sobre os fatos na Santa Elina, a exemplo do que fizemos com sem-terra e policiais.
* João Peres é autor de Corumbiara, caso enterrado
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