Domingo, 1 de agosto de 2010 - 10h02
Guacamayo, acampamento que cresceu até vilarejo, com as características choupanas cobertas com lona azul /FOTOS AFONSO DANIELS-OPERAMUNDI |
ALFONSO DANIELS
Enviado especial a Puerto Maldonado
OPERAMUNDI
PUERTO MALDONADO, Amazônia Peruana – "Rápido! Esconde a câmera, que vão bater na gente!", grita o motoqueiro enquanto cruzamos a selva a toda velocidade. O barulho distante de motores, uma virada brusca do guidão e, de repente, a mata desaparece, substituída por um deserto que se estende até onde a vista alcança, repleto de vilarejos miseráveis com barracas de campanha de lona azul ao lado de poças d'água pestilentas com homens mergulhados até o pescoço.
Em Guacamayo, na província de Madre de Dios, no coração da Amazônia peruana, o negócio milionário da atividade de extração ilegal de ouro ameaça destruir a região. Esta é uma grande consequência oculta da nova megaestrada de 2,6 mil quilômetros, a Interoceânica (ou Corredor Bioceânico ou, ainda, Rodovia do Pacífico), que vai ligar as zonas produtoras de carne e de soja do Brasil até o oceano Pacífico, de onde poderão embarcar para a China.
A estrada terá como pontos finais os portos peruanos de Ilo, Matarani e San Juan de Marcona e deve ser concluída até o fim do ano.
"Isto aqui é o Velho Oeste. Não há lei nem presença do governo", afirma o biólogo peruano Enrique Ortíz, co-fundador da Associação de Preservação da Bacia Amazônica. "A rodovia está facilitando a imigração e barateando suprimentos essenciais, como a gasolina. Se nada for feito, daqui a 100 anos tudo isto se transformará em uma imensa savana, como no norte da Bolívia e em partes do Brasil. Não precisaremos mais ir até a Arábia Saudita para ver dunas".
Garimpeiros que vivem da extração ilegal de ouro às margens da futura Rodovia Interoceânica |
Cratera
Autoridades estimam que cerca de 300 pessoas chegam à região a cada dia, num lugar quase inacessível até poucos anos atrás. Elas vêm do empobrecido altiplano boliviano em busca de trabalho e de uma vida melhor. A maioria termina no garimpo ilegal, aproveitando que o preço do ouro dobrou nos últimos dois anos, alcançando 1,2 mil dólares a onça (31 gramas), graças à crise econômica mundial.
E quase todos – cerca de 10 mil, embora ninguém saiba o número exato –terminam em Guacamayo, uma espécie de imensa cratera rodeada pela selva que pode ser vista do espaço. Ali, como nos anos 1970 e 80 em Serra Pelada (PA), os garimpeiros destroem a mata no afã de encontrar ouro em meio à areia debaixo das árvores, que depois vai parar em mercados europeus como Londres e Zurique.
Guacamayo, a rigor, tem apenas três anos de idade e fica cerca de 100 quilômetros ao sul da capital de Puerto Maldonado, acessível apenas de moto a partir de imensos acampamentos à beira da estrada, com nomes como Kilómetro 108 ou 112, dependendo do ponto da via. Mas já existem outros lugares similares como Jayave, Delta 1 e Delta 2, que não param de crescer. No total, cerca de 150 mil hectares já foram destruídos – até agora.
Onde termina a floresta e começa o descampado |
Madeira ilegal
Líderes garimpeiros como Amado Romero, presidente da poderosa Federação de Mineradores de Madre de Dios (Fedemin), reconhecem a destruição provocada pelo garimpo ilegal. Isto inclui dezenas de toneladas de mercúrio - até 80, segundo algumas organizações - usadas todo ano para separar o ouro da areia, contaminando os rios da região de tal modo que grande parte do peixe consumido agora vem de fazendas. Mas eles garantem que o garimpo de ouro pode respeitar o meio ambiente e culpam o governo por não intervir para combater o problema.
Seja quem for o culpado, o garimpo ilegal não é o único problema a acompanhar a Interoceânica. Ao norte de Puerto Maldonado, perto da fronteira com o Brasil, a ameaça vem de madeireiros ilegais. O presidente do comitê de gestão florestal do pequeno povoado de Alerta, José Cahuana, é um dos poucos que os enfrentam.
"Minha jurisdição é de 700 mil hectares e os madeireiros estão destruindo metade. Só falta construírem a ponte em Puerto Maldonado, que agora contém o fluxo de madeira, e você verá o que acontece. Será o fim", prevê, sentado na choupana de madeira onde mora e trabalha, num "escritório" formado por uma mesa, uma cadeira e um computador velho.
Tiros e propinas
Cahuana não ganha nenhum salário e se mantém com serviços esporádicos de carpintaria. Há dois anos, salvou a vida ao deixar o escritório antes da chegada do dono de um carregamento de madeira ilegal confiscado que dera oito tiros no vice-governador local. Desde então, parou de patrulhar a mata.
"Não vale a pena arriscar a vida", sentencia.
O governo não ajuda? "Não ajudam nem mesmo a viúva. E a polícia é pior: cobra pelo menos 50 soles (a moeda peruana, em quantia equivalente a 17 dólares) por carro, seja a madeira legal ou ilegal. Se souberem que um caminhão é ilegal, pedem 250 (90 dólares) e, se a espécie for boa, 500 soles. É um escândalo", afirma Cahuana com expressão cansada, enquanto lá fora recomeça a chover.
De lavrador, Cirilo Méndez conseguiu montar um restaurante, graças à capacitação promovida pelo BID |
Capacitação
Ainda assim, a rodovia não leva só notícias ruins à região. Espera-se a chegada de milhares de visitantes, principalmente brasileiros a caminho de Cuzco e Machu Picchu, o que impulsiona vários projetos de ecoturismo e a proteção de algumas áreas. Um exemplo é o restaurante 70 quilômetros ao sul de Puerto Maldonado inaugurado há dois meses por Cirilo Méndez, um agricultor local que chegou a esta zona vindo da costa para cultivar café.
"Há dois ou três anos, eu vendia meus produtos como sempre, em meu quiosque à beira da estrada. De repente, o presidente da Conirsa [empresa construtora da Interoceânica] aparece e me diz: 'Seu Cirilo, amanhã o senhor precisa estar aqui, porque o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] vai chegar'. No dia seguinte, vários funcionários chegaram, trouxeram o dinheiro e nos capacitaram para administrar isso", conta Méndez, orgulhoso, vestindo um uniforme branco de cozinha e rodeado pela família.
"Chegam turistas brasileiros, peruanos, franceses, todos pela estrada... uns 30, 50 por dia. Temos um passeio de 45 minutos, uma rota turística pela selva. Aqui era tudo floresta quando cheguei, há 25 anos. Só um ou dois caminhões passavam por dia e, no inverno, às vezes ficavam um mês sem passar. Nossa vida agora mudou 100% graças à rodovia".
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