Sábado, 27 de novembro de 2010 - 08h06
Além deles, quem mais vivia naquele lugarejo? Pesquisador entusiasmava-se com o vocábulo pronunciado pelos indígenas e com a sua intensa vida social /FOTOS LUIZ DE CASTRO FARIA |
JULIO OLIVAR
Especial para Amazônias
VILHENA – Felizmente, alguém registrou tudo. Desse tudo sobraram fragmentos para a história da terra que se chamaria Rondônia. Tido como pioneiro dos pioneiros no município, o índio aculturado Marciano Zonoecê chegou a Vilhena em 1943 para ser o administrador do posto telegráfico inaugurado pela expedição militar comandada pelo então tenente Cândido Rondon. E antes? Teria sido ele mesmo o primeiro não-índio a habitar a região junto com a sua família? O que havia em Vilhena no período entre 1910 até a chegada de Zonoecê?
Para muitos, há um “buraco” na História, muitas vezes narrada de forma equivocada pela imprensa. Publicado em 2001, o livro “Um outro olhar – diário da Expedição à Serra do Norte” (Editora Ouro Sobre Azul, 215 páginas) abre uma senda importante na historiografia regional.
Rica em fotos, a obra ainda é pouco conhecida. Com ilustrações feitas a lápis pelo autor e uma série de documentos, o livro trata da última expedição etnográfica do século 20. Em seu diário transformado em livro, o antropólogo Luiz de Castro Faria relata minúcias do cotidiano de Vilhena em 1938. Isso mesmo, cinco anos antes da chegada da família Zonoecê.
Anterior a Marciano Zonoecê houve alguns administradores que passaram pelo posto telegráfico, mas seus nomes não foram perpetuados. Naquele ano era responsável pelo posto um certo Manoel Lage, índio mamaindê, aculturado. A respeito dele, não há nada.
Marciano ficou conhecido na História porque viveu com sua família, no posto telegráfico até o seu fechamento, em 1969, quando já existia a Vila de Vilhena, localizada a cinco quilômetros dali, às margens da rodovia BR-364. Ele faleceu em 1997.
Única casa de telhas, a Casa de Rondon tinha ao redor casas de pau-a-pique. Pela descoberta mais recente, vilhenenses ficam sabendo que o posto telegráfico da Expedição Rondon nunca foi um ponto isolado no meio do nada |
Caderno de campo, uma preciosidade
Além da narrativa escrita, Luiz de Castro Faria, então com 24 anos de idade, era um excelente fotógrafo. Teve a oportunidade de registrar o cotidiano do lugar onde hoje se encontra a cidade de Vilhena. Na verdade, o livro é o caderno de campo do pesquisador, que na ocasião ocupava o cargo de secretário geral do Centro de Estudos Arqueológicos do Rio de Janeiro.
O material deste livro encadeia um arguto depoimento minucioso do cotidiano da Expedição Serra do Norte, patrocinada pela Prefeitura de São Paulo e chefiada pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss – que morreu em 2009 –, autor do célebre “Tristes Trópicos”, obra-prima na qual Vilhena também é mencionada. Naquele tempo, o legendário pesquisador Strauss era um jovem de 30 anos, professor da Universidade de São Paulo.
Os escritos foram mantidos ocultos durante 60 anos. Eles revelam dados pouco difundidos até a presente data. Por exemplo: existe a lenda de que o posto telegráfico – local hoje conhecido como Casa de Rondon – sempre fora um ponto isolado, no meio do nada. Naquele ano de 1938, porém, a coleção de fotografias publicada no livro mostra a existência de várias casas de pau-a-pique nas redondezas e uma intensa vida social dos indígenas.
Escritos esquecidos há 60 anos, documentos de campo contribuem para a atualização de preciosos dados sociológicos a respeito de uma terra por onde passaram grande etnógrafos, entre os quais Levy Strauss. |
“Casas de branco”
Nas imediações de onde Vilhena nasceu havia “casas de branco” (com portas, janelas etc) e um campo onde os indígenas – acreditem – jogavam handebol, usando uma bola de látex feita de seiva de mangaba. A influência do homem branco ia além do telégrafo. Há 72 anos alguns indígenas vilhenenses já usavam roupas, criavam galinhas e tinham cães de estimação.
A expedição aportou em Vilhena exatamente no dia 4 de setembro de 1938. Naquela manhã Faria anotou: “Encontramos uma turma de sabaneses e tagnânis”. No dia seguinte, os índios dançaram com a cadência marcada pelo pé direito. Cantiga de guerra em duas filas para a direita e para trás: “ê ê o ê”.
Afora as ocas de palha, Vilhena tinha apenas cinco casas, com cobertura de bocava e divisões internas feitas de paxiúba, ora deixada nua, ora barreada. A “Casa de Rondon” era a única coberta de telhas (fabricadas em Campos Novos) e bem assoalhada, onde residiam três famílias. Quem eram? Eis o mistério. Não há provas e registros documentais.
Handebol: no século passado, pouco depois do contato, indígenas já disputavam essa modalidade nas canchas improvisadas sobre o areião de suas aldeias |
“A maior emoção que já senti”
Sobre os índios das proximidades, que viviam perto do telégrafo, Lima anotou todo o processo de confecção da cestaria, adornos, armas e utensílios em cerâmica por eles usados. Chama atenção o vocábulo observado pelo pesquisador e disposto com esmero. No entorno do museu existiam sete tribos, conforme desenho feito pelo cientista.
Segundo Luiz de Castro Faria, alguns índios freqüentavam a casa onde funcionada o telégrafo. Na noite de 12 de setembro, por exemplo, um grupo formado por Maimandê e Cabixi visitou os expedicionários, tocando tocaram flauta para eles. “Foi a maior emoção que já senti. Há naquela música, soturna, profunda, qualquer coisa de realmente mágica”, anotou Luiz.
Ele também relatou a “guerra” entre os grupos indígenas da região. Os das margens do Aripuanã costumavam atacar e matar os sabaneses. Até pouco tempo atrás havia um cemitério indígena nas proximidades da “Casa de Rondon”.
Na época do registro, as terras vilhenenses pertenciam a Mato Grosso. A expedição com oito homens partiu de trem de São Paulo no dia 23 de abril, seguindo para Campo Grande e Corumbá – ambas ainda pertencentes ao antigo Mato Grosso –, de onde saiu pelo Rio Paraguai, de barco, até a região de Cuiabá.
Já no dia seis de junho, na então cidadezinha de Rosário Oeste, perto da capital mato-grossense, a expedição comprou animais e mantimentos para vir até Vilhena, passando por muitas comunidades indígenas. Dia 18 de setembro, o grupo saiu de Vilhena e seguiu para Porto Velho, então pertencente ao Estado do Amazonas e em seguida para Manaus e Belém, onde ocorreu a última anotação, dia três de janeiro de 1939.
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