Quinta-feira, 8 de julho de 2010 - 13h50
William Haverly Martins (*)
A Morte e a Imortalidade
Embora deslocado, mas cumprindo uma missão acadêmica, confesso que me sinto um ovo de uirapuru no ninho histórico-arqueológico dos Paraphysornis brasiliensis, como tal, espero que a literatura que me move o intelecto possa ajudar a chocar o delicado/simbólico ovo e, ao longo do tempo e das palavras/canto me veja inserido no contexto final do conhecimento, que justifique silêncio e atenção, mesmo à margem da estrada tema.
Pois bem, José Saramago, um dos maiores escritores de língua portuguesa de todos os tempos, morreu de leucemia aos 87 anos de idade, em sua casa na localidade de Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos dezoito dias do mês de junho do corrente ano.
M O R R E U ???
Ilmo.sr. Presidente da Acler, ilustríssimas autoridades presentes ou representadas, caríssimos confrades, estudantes, minhas senhoras e meus senhores, NINGUEM, ninguém morre após publicar 16 romances de boa lavra, além de poemas, peças de teatro, contos e crônicas. O paradoxal tempo nunca começou nem vai acabar para um autor que usou a arte literária para redimensionar o eu num mundo condicionado pelo capitalismo, pela cultura consumista e pela ética do dinheiro, um mundo que dita modas e modelos de comportamentos sociais, relegando sempre a um perigoso segundo plano os direitos do homem e o respeito ao próximo. A morte foi, é e sempre será, na literatura, como na vida autoral, personagem secundária, coadjuvante, jamais protagonista, uma vez que é do autor ficcional as rédeas da temporalidade, e quando ele as solta, ao término de um trabalho, a obra quase adquire vida própria, imortal na arte que a criou, rivalizando-se com o autor, ao tempo em que o imortaliza. Como é fascinante perceber o Dom Quixote, medindo forças com Cervantes, contemplando os séculos, como se um dos vasos da ampulheta do tempo nunca se esvaziasse, despertando, na vida cognitiva das esquinas acadêmicas de outrora, perguntas oriundas da dubitação retórica: quem é imortal, o autor ou a obra? Como separar o que está irremediavelmente junto, como questionar a coexistência de princípios indecomponíveis se não fizermos coro às palavras de Demócrito de que o homem só criará beleza quando escrever com entusiasmo divino e inspiração sagrada? A obra de arte literária, embora exista no universo das palavras, precisa do choque neuronal criativo para vir a ser, então, o literato abstrai-se de si mesmo, se descobre sectário de um panteísmo próprio, onde o criador se identifica com a criação, mas permite multifaces ao eu artístico. Foi assim com os heterônimos de Fernando Pessoa e, em outro patamar intelectual, também é assim quando o romancista se divide e se confunde com os seus personagens no fantástico e imortal mundo da criação artística.
José Saramago, oriundo da classe trabalhadora, sempre se orgulhou disto, tanto que no preâmbulo de seu discurso perante a Real Academia Sueca, pouco antes de receber o maior prêmio literário sonhado por todos que labutam com o encanto e o desencanto das palavras - o Nobel da Literatura - discorreu sobre sua árvore genealógica analfabeta e humilde, porém sábia, como se a simplicidade sapiente transcendesse a ignorância, como se o fim da busca filosófica pelo real sentido da vida estivesse nas pequenas coisas humildes da existência, ou, como nas palavras do próprio José Saramago: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira”. “Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. (...) Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerônimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: “Não faças caso, em sonhos não há firmeza”. Pensava então que a minha avó, embora fosse uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de por o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”. Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida, de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua, estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mudo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, GENTE, e este foi o meu avô Jerônimo pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver”.
José Saramago foi considerado pela elite intelectual de Portugal um autodidata, por falta de recursos não chegou a uma universidade, fez curso técnico e trabalhou como serralheiro, mecânico, funcionário público, jornalista, tradutor, crítico literário e só se dedicou inteiramente à literatura após os 58 anos de idade, o que não o impediu de ganhar, por conta de sua obra, quatro títulos de Doutor Honoris Causa concedidos pelas Universidades de Turim, Sevilha, Manchester e Federal de Minas Gerais, comprovando claramente: o sucesso foi fruto de um trabalho incessante, que culminou com o recebimento de vários prêmios, entre eles o Prêmio Camões em 1995, o Prêmio Consagração da Sociedade Portuguesa de Autores também no mesmo ano e o Prêmio Nobel da Literatura em 1998, consagrando definitivamente o apaixonado pela língua portuguesa, o vanguardista da linguagem: notadamente a ousadia na pontuação e a oralidade da escrita, além da criatividade dos processos de enfoque sujeitos às polêmicas religiosas e políticas. Suas frases reverberam nas universidades, despertando acalorados debates acadêmicos: “O planeta seria muito mais pacífico se fôssemos todos ateus”; “Marx nunca teve tanta razão como hoje”; “Ser comunista é um estado de espírito”.
Em o Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago não reescreve a Bíblia, como pensam os que sequer o leram, mas um romance repleto de acontecimentos fundamentais para o cristianismo, reinterpretando simbolicamente a figura de Jesus Cristo, mediante diálogos com o Deus sanguinário do Velho Testamento e nos apresentando um Cristo humano, maravilhoso, mais perto da problemática existencial. As descrições poéticas da paisagem: “a hora que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo (...). O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o mais levado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura”. E as palavras escolhidas pelo autor para o despertar da sexualidade de Jesus ao lado de Maria Madalena são marcantes e de rara beleza. No dizer da doutora Maria das Graças Targino: “quaisquer que sejam as nossas crenças religiosas, não há dúvidas! O Evangelho Segundo Jesus Cristo é uma obra-prima, recheada de passagens literariamente incríveis. É o caso da descrição da fuga de Herodes. É o diálogo, em pleno mar, entre os três: um Deus vingativo e consciente do preço a ser pago pela humanidade para que o seu poder ganhe força; um Diabo simpático e, ao mesmo tempo, apoquentado por atuar, sempre, como contraponto à presença de Deus; um Jesus maravilhosamente imperfeito! (...) O Evangelho de Saramago é muito mais romance que ofensa”.
Embora O Evangelho Segundo Jesus Cristo seja a sua obra-prima mais lida e aquela sujeita aos embates da dubiedade e ao paradoxo temerário da moral judaico-cristã, foi com o romance Memorial do Convento, anterior ao Evangelho..., que José Saramago adquiriu foros de unanimidade internacional na arte de escrever romances. Considerado por muitos um romance histórico, na visão da Dra. Shirley Carreira da UFRJ, Memorial do Convento é uma metaficção historiográfica onde o background de referência para a construção do autor advém do reinado de D. João V, da guerra de sucessão pelo trono da Espanha e das perseguições da Santa Inquisição. Segundo a Dra. Shirley o romance histórico difere nas características da metaficção historiográfica: “No romance histórico a história e a ficção convivem na intenção do resgate do passado e a presença de personagens históricas tem por intuito legitimar ou autenticar o mundo ficcional”. A metaficção historiográfica, por sua vez, no dizer de Hutcheon, instaura e posteriormente submete os conceitos que desafia. Para a Dra. Shirley os dados que Saramago toma por empréstimo à história de Portugal instauram uma relação espácio-temporal necessária a posterior subversão que o texto promove, proporcionando uma releitura crítica desse passado histórico oficial, ao mesmo tempo em que desafia o leitor a repensar o presente à luz desse redimensionamento do passado. José Saramago, em conclusão brilhante inserida no seu discurso de recebimento do Nobel, a respeito do seu primeiro livro a alcançar grande sucesso, asseverou: “Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerônimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia”: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu”. Que assim seja.
A literatura de José Saramago nunca esteve subordinada à política ou a religiosidade, o militante comunista nos encanta com textos que em nada seguem a sua postura política, ou ao seu ateísmo, mas a alteridade está presente em suas reflexões fortemente humanistas. A temática entremeada de problemas metafísicos, de estudos correlacionando a realidade com a aparência e demonstrações de como são as coisas quando não as estamos olhando, manifesta que a alteridade, enquanto relação escritor-leitor, é constitutiva da subjetividade do escritor: “Cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações, dúvidas.” Saramago construiu uma literatura plurissignificativa que reflete a sociedade a partir da alteridade humana, o significado histórico e o significado simbólico da maioria de seus romances não são antagônicos, nem difluentes, relacionam-se estreitamente, constituindo-se, através do relacionamento das personagens com o leitor, das reflexões e lições de vida, no húmus da alteridade: “As personagens da Jangada de Pedra – duas mulheres, três homens e um cão – viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se”.
Por fim, “o escritor de romances mais dotado de talento, um dos últimos titãs de um gênero em vias de extinção, na ótica esclarecida do crítico americano Harold Bloom, propõe ao homem um novo aprendizado do real que passe pela aprendizagem da visão: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem”. Ensaio sobre a Cegueira, o penúltimo dos livros de José Saramago, nos lembra a responsabilidade de ter olhos quando os outros a perderam: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
A denotativa morte, um significado na insignificância, tão manipulada pela conotação literária que conserva e transcende simultaneamente a literalidade das palavras, desce ao mundo do real, se apropria do fogo temporal da criação artística e silencia um dos pólos da imortalidade. Calou o homem, mas não a obra, ironicamente eternizada com a tinta do interior do graal. Virão outros!
(*) Membro da Academia de Letras de Rondônia
Palestra proferida dia 7 de julho de 2010 por ocasião do seminário “50 anos da BR-364”, promovido pela Academia de Letras de Rondônia e pelo Departamento de História e Arqueologia da Unir
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