Merece atenção o artigo de autor não identificado (agradeço se alguém informar) que recebi via Web. Reproduzo e recomendo a leitura por considera-lo absolutamente indispensável nesse nosso cotidiano de banalização da criminalidade e de impunidade absoluta dos bandidos. A incorporação da violência pela anormalidade brasileira chega ao ponto absurdo das vítimas assumirem até com naturalidade a culpa pelos crimes sofridos. Algo tão “natural” quanto o rabo abanar o cachorro. Surreal.
O imobilismo derrotado das autoridades, consequência evidente do retumbante fracasso do sistema em todos os níveis e hierarquias talvez esteja na origem do semblante entristecido do brasileiro. Erra quem afirmar que isso talvez possa ser resultado do fiasco da seleção. Curta memória. Quem não se lembra das ruas enfeitadas quase todas em copas anteriores. Alguém viu algo semelhante neste mundial, mesmo quando ainda se depositava alguma esperança no desempenho da seleção?
Essa dramática situação pode conduzir a uma ruptura do chamado tecido social, como aliás já vem acontecendo com frequência nos linchamentos registrados em todo o país. O risco está na defesa da “lei de Talião” ou no surgimento de novos esquadrões da morte, cujos embriões já pipocam nas milícias já instaladas especialmente no Rio e em SP, na clara substituição de uma quadrilha por outra, igualmente lastreada na extorsão e na criminalidade.
Acredito que estamos vivenciando, quem sabe, aquilo que a escritora Adélia Prado lembrou no programa Roda Viva, comandado pelo articulista Augusto Nunes, de Veja. Ela citou o livro “A transparência do mal”, de Jean Baudrillard, para dizer que o mal está tão disseminado, tão arraigado, tão generalizado, que chega a ficar transparente. Passa a nem ser mais notado. “O resultado disso é uma tristeza muito grande” – afirmou ela.
De volta ao artigo, o autor cataloga diversos exemplos, que enumeramos aqui:
1 - José foi assaltado. Levaram o carro dele. Ao chegar em casa de táxi, ele imediatamente assumiu a culpa pelo roubo: - “Eu dei bobeira, não deveria ter parado naquele semáforo”....
2 - Maria foi estuprada, e quase morreu. Ao prestar depoimento, ela deixou bem clara sua responsabilidade pelo episódio: - “Eu vacilei, não deveria ter ido comprar pão sozinha”...
3- Um ladrão arrancou o telefone celular das mãos de João enquanto ele atendia uma ligação. Ele – o João, e não o ladrão – assumiu total culpa pelo crime: - “Eu não sei onde estava com a cabeça quando fui atender uma ligação no meio da rua”....
4 - Maria foi morta durante um assalto. Ela gritou e acabou levando um tiro. Por ocasião de seu enterro, Maria foi condenada por todos os presentes: - “Que estupidez dela ter gritado, todo mundo sabe que durante um assalto o melhor é ficar em silêncio”....
5 - Mário, um dedicado Policial Militar, foi morto a tiros por traficantes do morro no qual morava. Seus familiares, entrevistados por um jornalista, o recriminaram duramente: - “Ele sempre foi cabeça-dura, nunca quis esconder a farda quando voltava para casa”....
6 - No mesmo morro Paulo, um líder comunitário, foi esfaqueado até à morte pelos mesmos traficantes. Seus amigos o criticaram ferozmente: - “que falta de juízo, procurar a Polícia para denunciar que o crime estava dominando o morro”....
7 - Marcos teve sua loja assaltada, e quase levou um tiro. Seus empregados reclamaram dele: - “Que estupidez, deixar aquele monte de mercadoria exposta na vitrina”....
8 - Marcos passou a deixar tudo trancado em um cofre. Mas a loja foi assaltada de novo, e um de seus funcionários, após quase levar um tiro por ter demorado a abrir o cofre, agrediu-o violentamente: - “Seu miserável, fica trancando tudo, mais preocupado com as mercadorias do que com a gente, e quase levamos um tiro por sua causa”....
9 - Carlos estava jantando com sua namorada em um movimentado restaurante, quando uma quadrilha armada saqueou todos os clientes. Seu futuro sogro não gostou: - “Este rapaz é um irresponsável... Ele sabe muito bem que não estamos em época de ficar bestando por aí, jantando fora, e acabou passando por um assalto e traumatizando minha filha”.....
10 - Joel entrou em um subúrbio com o caminhão da empresa para entregar pacotes de biscoito nos bares de lá. Após ter tido os produtos e o caminhão roubados, e quase ter sido morto, foi despedido por seu chefe: - “Que sujeito burro, ir com o caminhão lá naquele bairro sem pedir licença para o líder do tráfico local”....
11 - Patrícia viajou a negócios. Desembarcou no aeroporto com seu “notebook” e tomou um táxi. Não conseguiu andar dois quarteirões – foi assaltada em um semáforo. Na empresa, foi imediatamente repreendida: - “Você não poderia ter desembarcado sem antes esconder o notebook, deste jeito você pediu para ser assaltada”....
E é assim, de exemplo em exemplo, todos já parte do nosso cotidiano, que vamos chegando a uma verdadeira “rotina do absurdo”. Aqui no Brasil é tão normal um cidadão ter medo de andar pelas ruas, é tão comum um policial ter que esconder sua profissão para não morrer, é tão usual pessoas terem que pedir permissão a traficantes para subir em morros e é tão rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica, que já não causa surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes. Diante desta tenebrosa realidade, patrocinada pela fraqueza e falta de firmeza das nossas instituições, talvez já não nos cause surpresa ver o rabo abanando o cachorro.
Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)