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Dom Moacyr

Ano da Fé e Concilio Vaticano II


A Igreja esta celebrando nesta semana o cinquentenário de abertura do Concilio Vaticano II (11/10/1962) com a proclamação do Ano da Fé e com o sínodo dos bispos sobre a nova evangelização (7-28/10/2012).

É antigo o costume de se ter anos temáticos na Igreja. Os Jubileus, Anos Santos, Anos Marianos e Anos Eucarísticos são os mais comuns. O papa João Paulo II ampliou tal costume nos anos que antecederam a Celebração do Grande Jubileu do ano 2000, com uma sequência de anos temáticos. Os benefícios disso são muitos: a renovação da consciência eclesial, a animação da ação pastoral e evangelizadora da Igreja, a solidificação da comunhão e outros muitos.

Ano da Fé já houve um, em 1967, proclamado por Paulo VI. A ele Bento XVI se refere na Carta Apostólica Porta Fidei, assumindo a intenção fundamental do anterior. Naquela ocasião, no contexto do 19ºcentenário do martírio de São Pedro e São Paulo, o objetivo era retomar a exata consciência da fé para reavivá-la, purificar, confirmar, confessar.

Estamos diante de uma profunda crise de fé, de uma perda do sentido religioso, que constitui o maior desafio para a Igreja de hoje. A renovação da fé deve ser, portanto, a prioridade no compromisso de toda a Igreja nos nossos dias.

O Papa João XXIII faleceu no primeiro ano do Concilio (3/6/1963). Com a sua morte, o Concílio foi suspenso. Mas, o novo Papa manifestou o desejo de continuar imediatamente o Concílio. A 2ª sessão foi aberta no dia 29 de setembro de 1963 e em seu discurso de abertura, Paulo VI apresentou os quatro objetivos do Concílio: “a definição ou a consciência de Igreja, a sua reforma, a restauração da unidade entre todos os cristãos e o diálogo da Igreja com os homens contemporâneos”.

A recente edição (404) da Revista do Instituto Humanitas trata das grandes intuições que animaram a caminhada da Igreja na América Latina nestes 50 anos após o Concílio, trazendo a contribuição de teólogos da atualidade, presentes no Congresso Continental de Teologia (7-11/10/2012).

Ao destacar os principais desafios que o mundo apresenta hoje à Igreja, o teólogo jesuíta, pe. Victor Codina (atualmente, professor de Teologia na Universidade Católica Boliviana de Cochabamba, atuando ainda, na formação de leigos e na pastoral popular), faz, nessa edição, uma retrospectiva histórica dos últimos 50 anos, desde a convocação do Concílio Vaticano II, questionando: “A Igreja será capaz de dizer uma palavra a este novo mundo de hoje?”

Ao analisar a importância do Concílio para a Igreja, diz que João XXIII mandou rezar para que o Vaticano II fosse um novo pentecostes. E, de fato, foi: o ar fresco do Espírito rejuvenesceu e renovou a Igreja por dentro. Há um antes e um depois do Vaticano II, que produziu uma verdadeira mudança: de uma Igreja tipicamente de cristianismo, centrada no poder e na hierarquia, verdadeira pirâmide hierárquica, passando para uma Igreja do Povo de Deus, de pessoas batizadas (LG II), a qual caminha junto com toda a humanidade na história e está aberta aos desafios dos novos sinais dos tempos (GS 4,11,44);

De uma Igreja centrada em si própria para uma Igreja orientada para o Reino de Deus, do qual ela é o sacramento e a semente (LG 1,5); de uma Igreja sociedade perfeita “tão histórica e visível como a República de Veneza ou o reino dos Francos” (Bellarmino) para uma Igreja mistério da salvação, enraizada na Trindade (LG I), uma multidão congregada pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo (LG 4); de uma Igreja vista como a prolongação da encarnação de Jesus, e com risco de cair no cristomonismo de que os orientais nos acusam, para uma Igreja que brota tanto de Cristo como do Espírito que unge os fiéis com o dom da fé e reparte uma pluralidade de carismas (LG 12);

De uma Igreja centralizada e uniforme para uma Igreja de Igrejas, comunhão da pluralidade de Igrejas locais corresponsáveis, nas quais e pelas quais existe a Igreja Universal (LG 23); de uma Igreja triunfante, dominadora, gloriosa, que parece ter chegado à plenitude da escatologia, para uma Igreja pobre e que abraça os pecadores em seu seio (LG 8), para uma Igreja peregrina para o Reino, que se preenche do pó do caminho (LG VII);

De uma Igreja que afirmava que fora dela não havia salvação para uma Igreja que acredita que o Espírito oferece a todos a possibilidade de salvação em Cristo, por caminhos somente conhecidos por Deus (GS 22), pois a Divina Providência não nega sua graça às pessoas de coração reto as quais não por sua própria culpa chegaram a conhecer a Deus (LG 16);

De uma Igreja acostumada ao anátema e à excomunhão para uma Igreja que prefere usar o diálogo, o perdão e a misericórdia; de uma Igreja que não respeita a liberdade religiosa, porque acredita que o erro não tem direitos, para uma Igreja que reconhece e respeita a liberdade de cada um de buscar e professar sua fé segundo sua consciência (DH).

O Vaticano II significou uma volta às fontes da fé e da autêntica Tradição, abertura para nosso tempo e desenvolvimento da doutrina. Ao analisar a caminhada da Igreja depois do Concílio e das diferentes tendências quanto à sua recepção, Codina acentua que nos documentos do Vaticano II, coexistem duas eclesiologias: uma eclesiologia de comunhão, que é a dominante, mas também outra, mais jurídica. Viveu-se um verdadeiro conflito de interpretações, uma guerra hermenêutica entre a identidade e a novidade, esquecendo-se de que não há identidade sem progresso, nem um progresso autêntico que rompa com a verdadeira tradição da Igreja.

Em Medellín (1968) e Puebla (1979), a Igreja da América Latina realizou uma recepção criativa e inspiradora do Vaticano II, relendo o concílio a partir da situação de pobreza e de injustiça do continente. Aplicou a doutrina conciliar dos sinais dos tempos, e escutou no clamor do povo pobre um verdadeiro sinal dos tempos, a presença do Espírito que pedia justiça e direito. Nesse clima, surge a opção pelos pobres, as CEBs, a leitura popular da Bíblia, os bispos defensores dos pobres, agentes pastorais comprometidos com o povo, com a vida religiosa inserida nos meios populares e o martírio. A Teologia da Libertação que nasce nesse contexto acompanhou todo esse processo, iluminando-o com os valores evangélicos e a verdadeira Tradição eclesial.

Em um segundo momento, até os anos 1990, embora a problemática da pobreza e da injustiça não tenha desaparecido, mas aumentado, surgiram novos cenários e novos sujeitos emergentes: jovens, mulheres, indígenas e afro-americanos, as culturas, as religiões, a terra e seu clamor ecológico. As conferências de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), ao mesmo tempo em que reafirmam as opções de Medellín e Puebla pelos pobres, abriram-se a essa nova problemática: diálogo intercultural e inter-religioso, nova evangelização, estado de missão, missão permanente, etc.

Ao constatar que nesses 50 anos houve profundas mudanças em todo o mundo, Codina afirma que estamos ante uma mudança cultural e religiosa sem precedentes, um verdadeiro tsunami invade o planeta. A problemática do Vaticano II foi insuficiente e, de algum modo, superada. O problema não é hoje tanto a Igreja, mas Deus, a secularização, o diálogo inter-religioso e, além disso, a exclusão de grandes setores da riqueza da terra e da sociedade do conhecimento, a discriminação da mulher na sociedade e na igreja patriarcal de hoje, a indignação dos jovens perante a sociedade violenta e desumana que receberam das gerações passadas, a ameaça ecológica e a crise econômica, etc.

Os valores da pós-modernidade podem e devem ser assumidos em seus aspectos positivos pela Igreja. Mas, para isso, o Vaticano II, longe de ser um estorvo, é um ponto de partida irrenunciável: não se pode avançar contra ou à margem do Concílio, mas deve-se ir além dele. A eclesiologia não pode converter-se no centro de nossa preocupação cristã, já que somente Jesus Cristo é o princípio e o fundamento de nossa fé.

O Espírito do Senhor não abandona hoje sua Igreja, mas impulsiona-a para levar adiante a inspiração de João XXIII e do Vaticano II.

Na América Latina, tem-se que elaborar uma espiritualidade a partir dos pobres, que possa ser uma fonte de esperança para a Igreja e o mundo: outro mundo é possível, outra Igreja é possível.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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