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Dom Moacyr

Antes que seja tarde demais



O Tempo da Quaresma é propício para “ouvir com mais frequência a Palavra de Deus e orar com mais intensidade a fim de celebrarmos o mistério pascal” (SC 109). Há uma insistência para a conversão e mudança de vida. Antes que seja tarde demais. 

É Deus quem nos convida à renovação de nós mesmos, em Cristo. Somos chamados a nos reconciliar com Ele e com os nossos irmãos. Na medida em que rompermos com as situações de pecado, de injustiça e de egoísmo, nos associamos à morte e à ressurreição de Cristo. 

O Evangelho do terceiro domingo da quaresma (Lc 13,1-9) fala da urgência da conversão antes que se esgote a paciência de Deus. Diante da notícia da violenta morte de alguns galileus, cujo sangue Pilatos derramou junto com os sacrifícios que ofereciam no templo, Jesus pergunta: “Vocês julgam que esses galileus, por terem padecido tal suplicio, eram mais pecadores do que outros galileus? Eu lhes digo que não: mas se vocês não se converterem todos perecerão do mesmo modo”. 

Pergunta e resposta que Jesus repete comentando a morte acidental de dezoito pessoas no desabamento de uma torre em Siloé, ao sul de Jerusalém (B.Caballero). Pergunta e resposta que devemos ouvir perante mais de 200 mil haitianos mortos num único terremoto; igualmente diante de outros 700 irmãos chilenos que também perderam suas vidas no segundo terremoto deste ano, e os gemidos de milhares de famintos que ecoam em nossos ouvidos, cuja imagem não sai de nossas mentes. 

A parábola da figueira estéril reflete a misericórdia de Deus e manifesta sua paciência que espera de nós frutos de conversão. Deus é compassivo e misericordioso, todavia, é tempo de se converter e dar fruto para Deus, aproveitando a oportunidade da Quaresma. Mudar o interior nos é penoso porque estamos instalados muito a gosto em nossa mesquinhez e na sombra inútil de nossa figueira frondosa, mas talvez estéril, com todas as soluções em mãos, mas sem aplicar nenhuma para nos renovar e melhorar o ambiente no qual nos movemos. 

Paulo VI em uma de suas mensagens quaresmais cita São Basílio que pregava àqueles que se encontravam na fartura de bens: “o pão que em vossa casa fica como sobra inútil é o pão daqueles que passam fome; a túnica que está dependurada no vosso guarda-vestidos, é a túnica daquele que está nu; os sapatos a mais que nas vossas habitações permanecem inúteis são os daqueles que andam descalços; o dinheiro que vós conservais aferrolhado é o dinheiro do pobre: vós cometeis tantas injustiças, quantas são as obras de bem-fazer que poderíeis praticar” (Hom. VI in Lc, XII, 18). 

Dos Jesuítas que trabalham no Haiti ouvimos recentemente o testemunho do drama diário em que vivem milhares de irmãos haitianos: “Nossa nação está submersa na vergonha e na desesperança com sua soberania de joelhos e a maior parte da população vivendo em condições desumanas”. A miséria de nosso povo é também a incapacidade total da maioria de nossos governantes para enfrentar os problemas fundamentais da sociedade; a ausência total de uma oposição política construtiva que controle e estimule a ação governamental em benefício da nação..;a irresponsabilidade da comunidade internacional, particularmente dos países chamados amigos do Haiti, das instituições financeiras internacionais ..que não cumpriram sua promessa com o Haiti, assistindo, cinicamente, a sociedade haitiana “descer aos infernos”. O povo haitiano é um povo de valor; porém, agora não está em condições de reagir. Torturado pela miséria, grita. Seu grito se converte em chamada. 

Nesta Quaresma somos interpelados fortemente por essa e outras situações intoleráveis de injustiça que ameaçam a vida de nossa gente. Ninguém é neutro ou inocente; todos somos culpados individual ou solidariamente. Somos nós, cada um, os chamados a renovar-se primeiro. Jesus disse: “se vocês não se converterem, perecerão do mesmo modo.” De um coração convertido aos valores do Reino de Deus e do Evangelho seguir-se-ão naturalmente os frutos visíveis de uma conversão que atinge a realidade da vida. 

A Quaresma é tempo de sacrifício e de penitência; mas é também tempo de comunhão e de solidariedade. O profeta Isaías exorta: “Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? diz o Senhor Deus: ... é repartir o teu pão com o faminto, dar abrigo aos infelizes sem teto, vestir o nu, quando o vires, e não desprezar nunca o teu irmão” (Is 58,6-7). Nestas exortações, segundo Paulo VI, ressoa como que o eco das preocupações do mundo de hoje. Cada um de nós é chamado a compartilhar realmente os sofrimentos e as desventuras de todos os demais. Assim, a esmola e o dom de si mesmo não devem ser atos isolados e ocasionais, mas sim a expressão da união fraterna entre todos. 

Os primeiros cristãos puseram em prática espontaneamente o princípio segundo o qual os bens deste mundo são destinados pelo Criador à satisfação das necessidades de todos sem exceção. Compartilhar com os outros, portanto, é uma atitude cristã fundamental. Nas numerosas iniciativas para atuar o amor do próximo, desde a esmola e a prestação de serviços individuais até às contribuições coletivas para a promoção dos povos materialmente menos favorecidos, o cristão experimenta a alegria de repartir e partilhar com os demais de um patrimônio, posto generosamente por Deus à disposição de todos. 

Assimilar os critérios de Jesus e seu estilo de conduta tal como o expressou em todo o conjunto de sua vida significa converter o coração ao desprendimento, à fraternidade, à paz, à misericórdia, à alegria. 

No imenso tesouro do Evangelho, a misericórdia é como uma gema preciosa: sólida e delicada ao mesmo tempo; verdadeira e transparente na sua simplicidade; brilhante pela vida e alegria que difunde. Compaixão, solidariedade, ternura e perdão são como seus ângulos de polimento, por onde se reflete .. o amor regenerador de Deus. (M.Maçaneiro). 

Alcançamos o amor misericordioso de Deus e a sua misericórdia, na medida em que nos transformarmos interiormente, segundo o espírito de amor para com o próximo. Este processo autenticamente evangélico não consiste numa transformação espiritual realizada de uma vez para sempre; mas é um completo estilo de vida, uma característica essencial e contínua da vocação cristã. Consiste, pois, na descoberta constante e na prática perseverante do amor, como força que ao mesmo tempo unifica e eleva, não obstante todas as dificuldades de natureza psicológica ou social. Trata-se, efetivamente, de um amor misericordioso que, por sua essência, é amor criador (DM14). 

A conversão do coração a que nos impele a Quaresma, além de se expressar na vida a ser conhecida por seus frutos, tem um sacramento que a orienta: a Penitência ou a Reconciliação, o sacramento do perdão onde Deus nos reconcilia consigo e com os irmãos. 

Este sacramento é a festa do reencontro e do amor misericordioso do Pai. As pessoas aspiram viver em paz, reconciliadas consigo e com os semelhantes. Mas na realidade o que se vivencia são conflitos, tensões familiares e sociais. Como resultado observa-se uma reação imediata de isolamento como conseqüência dessa transgressão e ruptura. Contudo, a vulnerabilidade do sentir-se só e machucado, pode ecoar num grito em busca de uma nova realidade, de uma possível mudança, que fala: “é preciso mudar!” Ninguém, em sã consciência, consegue viver unicamente e por muito tempo, em meio a conflitos e transgressões (F.Paludo). 

“Levantar-me-ei e irei ter com meu pai!” (Lc 15,18) Possa a Quaresma nos ajudar nesse processo de conversão que expressa gradativamente a mudança que vamos operando na direção do Reino de Deus.

Fonte: Pascom

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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