Na Quarta-feira de cinzas (13 de fevereiro) iniciamos a Campanha da Fraternidade e o itinerário quaresmal, caminho caracterizado pela escuta da Palavra de Deus, oração e penitência. São 40 dias durante os quais a liturgia ajudar-nos-á a reviver as fases significativas do mistério da salvação.
A Mensagem de Bento XVI para esta Quaresma oferece-nos a possibilidade de refletir a relação entre duas virtudes teologias: a fé e a caridade, isto é, entre o crer no Deus revelado por Jesus Cristo, e a caridade, que é fruto do Espírito Santo e nos impulsiona a redescobrir Deus em nossa vida, através do caminho de doação a Deus e aos outros.
No contexto do Ano da Fé e da Páscoa, a Mensagem do Papa para a Quaresma, que tem como tema: “Crer na caridade suscita caridade”, recorda-nos que a verdadeira fonte da caridade é “Cristo que morreu e ressuscitou por amor”.
Na 1ª parte da Mensagem: “A fé como resposta ao amor de Deus”, o papa partindo duma afirmação fundamental do apóstolo João: “Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele” (1Jo 4,16), recorda que, no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.
“Deus foi o primeiro a amar-nos” (1Jo 4,10), agora o amor já não é apenas um mandamento, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro (DC 1). A fé constitui a adesão pessoal à revelação do amor gratuito e apaixonado que Deus tem por nós e que se manifesta plenamente em Jesus Cristo. O encontro com Deus Amor envolve não só o coração, mas também o intelecto e... daqui deriva, para todos os cristãos e em particular para os agentes da caridade, a necessidade da fé, daquele encontro com Deus em Cristo que suscite neles o amor e abra o seu íntimo ao outro, de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (DC 31).
A 2ª parte da Mensagem: “A caridade como vida na fé” evidencia que toda a vida cristã consiste em responder ao amor de Deus. A primeira resposta é precisamente a fé como acolhimento, cheio de admiração e gratidão, de uma iniciativa divina inaudita que nos precede e solicita; e o “sim” da fé assinala o início de uma luminosa história de amizade com o Senhor, que enche e dá sentido pleno a toda a nossa vida.
Mas Deus não se contenta com o nosso acolhimento do seu amor gratuito; não Se limita a amar-nos, mas quer atrair-nos a Si, transformar-nos de modo tão profundo que nos leve a dizer, como São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
Quando damos espaço ao amor de Deus, tornamo-nos semelhantes a Ele, participantes da sua própria caridade. Abrirmo-nos ao seu amor significa deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar com Ele, n’Ele e como Ele; só então a nossa fé se torna verdadeiramente uma “fé que atua pelo amor” (Gl 5,6) e Ele vem habitar em nós (1Jo 4,12).
Pela fé, entramos na amizade com o Senhor; pela caridade, vivemos e cultivamos esta amizade (Jo 15,14-15). A fé faz-nos acolher o mandamento do nosso Mestre e Senhor; a caridade dá-nos a felicidade de pô-lo em prática (Jo 13, 13-17). Na fé, somos gerados como filhos de Deus (Jo 1,12-13); a caridade faz-nos perseverar na filiação divina de modo concreto, produzindo o fruto do Espírito Santo (Gl 5, 22). A fé faz-nos reconhecer os dons que o Deus bom e generoso nos confia; a caridade fá-los frutificar (Mt 25,14-30).
“O entrelaçamento indissolúvel de fé e caridade” é o título da 3ª parte da mensagem do papa que reafirma que nunca podemos separar e menos ainda contrapor fé e caridade... A existência cristã consiste num contínuo subir ao monte do encontro com Deus e depois voltar a descer, trazendo o amor e a força que daí derivam, para servir os nossos irmãos e irmãs com o próprio amor de Deus. Na Sagrada Escritura, vemos como o zelo dos Apóstolos pelo anúncio do Evangelho, que suscita a fé, está estreitamente ligado com a amorosa solicitude pelo serviço dos pobres (At 6,1-4).
Na Igreja devem coexistir e integrar-se contemplação e ação, de certa forma, simbolizadas nas figuras evangélicas das irmãs Maria e Marta (Lc 10,38-42). A prioridade cabe sempre à relação com Deus, e a verdadeira partilha evangélica deve radicar-se na fé. De fato, por vezes tende-se a circunscrever a palavra caridade à solidariedade ou à mera ajuda humanitária; é importante recordar, ao invés, que a maior obra de caridade é precisamente a evangelização, ou seja, o serviço da Palavra. Não há ação mais benéfica e, por conseguinte, caritativa com o próximo do que repartir-lhe o pão da Palavra de Deus, fazê-lo participante da Boa Nova do Evangelho, introduzi-lo no relacionamento com Deus: a evangelização é a promoção mais alta e integral da pessoa humana...
A propósito da relação entre fé e obras de caridade, há um texto na Carta de São Paulo aos Efésios que a resume talvez do melhor modo: “É pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós; é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie. Porque nós fomos feitos por Ele, criados em Cristo Jesus, para vivermos na prática das boas ações que Deus de antemão preparou para nelas caminharmos” (2,8-10).
Daqui se deduz que toda a iniciativa salvífica vem de Deus, da sua graça, do seu perdão acolhido na fé; mas tal iniciativa, longe de limitar a nossa liberdade e responsabilidade, torna-as mais autênticas e orienta-as para as obras da caridade. Estas não são fruto principalmente do esforço humano, de que vangloriar-se, mas nascem da própria fé, brotam da graça que Deus oferece em abundância. Uma fé sem obras é como uma árvore sem frutos: estas duas virtudes implicam-se mutuamente.
A Quaresma, com as indicações que dá tradicionalmente para a vida cristã, convida-nos precisamente a alimentar a fé com uma escuta mais atenta e prolongada da Palavra de Deus e a participação nos Sacramentos e, ao mesmo tempo, a crescer na caridade, no amor a Deus e ao próximo, nomeadamente através do jejum, da penitência e da esmola.
Na 4ª e ultima parte da Mensagem: “Prioridade da fé, primazia da caridade”, o papa expressa que como todo o dom de Deus, a fé e a caridade remetem para a ação do mesmo e único Espírito Santo (1Cor 13), aquele Espírito que em nós clama: “Abbá! Pai!” (Gl 4,6), e que nos faz dizer: “Jesus é Senhor!” (1Cor 12,3) e “Maranatha! Vem, Senhor!” (1Cor 16,22; Ap 22,20).
Enquanto dom e resposta, a fé faz-nos conhecer a verdade de Cristo como Amor encarnado e crucificado, adesão plena e perfeita à vontade do Pai e infinita misericórdia divina para com o próximo; a fé radica no coração e na mente a firme convicção de que precisamente este Amor é a única realidade vitoriosa sobre o mal e a morte. A fé convida-nos a olhar o futuro com a virtude da esperança, na expectativa confiante de que a vitória do amor de Cristo chegue à sua plenitude. Por sua vez, a caridade faz-nos entrar no amor de Deus manifestado em Cristo, faz-nos aderir de modo pessoal e existencial à doação total e sem reservas de Jesus ao Pai e aos irmãos. Infundindo em nós a caridade, o Espírito Santo torna-nos participantes da dedicação própria de Jesus: filial em relação a Deus e fraterna em relação a cada ser humano.
A relação entre estas duas virtudes é análoga à que existe entre dois sacramentos fundamentais da Igreja: o Batismo e a Eucaristia. O Batismo precede a Eucaristia, mas está orientado para ela, que constitui a plenitude do caminho cristão. De maneira análoga, a fé precede a caridade, mas só se revela genuína se for coroada por ela. Tudo inicia do acolhimento humilde da fé (saber-se amado por Deus), mas deve chegar à verdade da caridade (saber amar a Deus e ao próximo), que permanece para sempre, como coroamento de todas as virtudes.
Que nesta Quaresma, preparando-nos para celebrar o evento da Cruz e da Ressurreição, no qual o Amor de Deus redimiu o mundo e iluminou a história, possamos viver este tempo precioso reavivando a fé em Jesus Cristo, para entrar no próprio circuito de amor ao Pai e a cada irmão e irmã que encontramos na nossa vida.