Começa nossa caminhada quaresmal, ocasião propícia para a renovação de nossa fé, tempo forte da graça de Deus em nossas vidas. Com a celebração daQuarta-feira de Cinzas iniciamos este tempo de conversão e penitência, aderindo a proposta de observância quaresmal da oração, do jejum e da esmola.
Da 4ª Feira de Cinzas até a Missa da Ceia do Senhor estaremos preparando a celebração da Páscoa. “É, sem dúvida, um período de austeridade; mas fecundo e já portador de renovação, como uma primavera espiritual” (Paulo VI).
Na Bíblia, o número 40 (dias ou anos) significa um período de preparação para algum acontecimento importante: dilúvio universal, Moisés no monte antes da Aliança, Israel no deserto, Elias na sua fuga, o prazo dado por Jonas a Nínive, Cristo no deserto, tempo entre a Ressurreição e a Ascensão de Jesus.
Na liturgia destes 40 dias da Quaresma, vamos refletir o mistério da renovação da pessoa humana em Cristo e por Cristo, através da penitência. AAliança e o mistério da cruz de Cristo são temas fundamentais de Marcos (ano B). No 1º e 2º Domingo a temática é fixa, variando conforme os Evangelistas do ano: as tentações de Jesus no deserto e a transfiguração do Senhor.
Jesus é o modelo da vida de penitência dos cristãos: o Jesus que jejua e se dedica à oração deve ser visto à luz do Cristo transfigurado. Toda a caminhada da conversão dos cristãos só tem sentido à luz da ressurreição pregustada no Tabor. Seguindo Cristo no mistério da cruz, participaremos de sua ressurreição (A. Beckhauser).
Na sequencia, as leituras apresentam tópicos da aliança de Deus com seu povo; do evangelho de Joãouma catequese da morte vitoriosa de Cristo: a restauração do Templo (o corpo de Cristo, Jo 2,13-25); o Cristo exaltado na cruz para a salvação do mundo (Jo 3,14-21); Jesus que atrai todos a si e o grão de trigo que precisa morrer para produzir fruto (Jo 12, 20-33;).
As primeiras leituras do Antigo Testamento apresentam grandes momentos da História da Salvação e o tema da Aliança: a Aliança com Noé (1ºdom), com Abraão (2º), com Moisés e o povo no Sinai (3º), o castigo pela infidelidade de Israel (4º), o anuncio da nova Aliança por Jeremias (5º) e a entrega do Servo para a reconciliação universal (Ramos; A.Rivero).
A liturgia de hoje se inspira na catequese batismal e é animada por um espírito de confiança. Confiança que significa entrega: corresponder ao amor de Deus por uma vida santa (Konings).O livro do Genesis apresenta um extrato da história do dilúvio(Gn 9, 8-15). O Senhor Deus, depois de eliminar o pecado que escraviza o homem e corrompe o mundo, vem ao seu encontro, faz com ele uma Aliança e faz nascer uma nova humanidade.
Jesus, impelido pelo Espírito, enfrenta no deserto as forças do mal e vence (Mc 1, 12-15). Doravante, acompanhá-lo-emos em sua subida a Jerusalém, obediente ao Pai. Será a verdadeira prova, na doação até a morte, morte de cruz. Ele é como a arca que salvou Noé e os seus, através das águas do dilúvio. Com ele somos imersos no batismo e saímos renovados, numa nova e eterna Aliança.
Pedro recorda que, pelo Batismo, aderimos a Cristo e à salvação que Ele veio oferecer (1Pd 3, 18-22). Comprometemo-nos a segui-lo no caminho do serviço e dom da vida; em Cristo nos tornamos o princípio de uma nova humanidade.
A Quaresma é tempo de renovação e comunhão;de perdão e reconciliação; exige de nós um testemunho de total solidariedade com aqueles com os quais Cristo quis identificar-se. Convida-nos a mudar totalmente a mente e o coração, para escutarmos a voz do Senhor e o seu apelo de voltarmos para Ele, em novidade de vida, e a sermos cada vez mais sensíveis aos sofrimentos dos que nos rodeiam. Neste período quaresmal, é salutar a busca do perdão de Deus através do Sacramento da Reconciliação; é salutar oferecer o perdão aos que conosco convivem e assim, chegarmos preparados e reconciliados para a Páscoa.
A Campanha da Fraternidade, cuja abertura aconteceu 4ª Feira de Cinzas, é uma das principais expressões de vivência do amor fraterno neste período. Tem como tema “Fraternidade: Igreja e Sociedade” e lema “Eu vim para servir” (Mc 10,45) e por objetivo geral, aprofundar o diálogo e a colaboração entre a Igreja e a sociedade, propostos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, como serviço ao povo brasileiro, para a edificação do Reino de Deus.
Por ocasião da 52ª Assembleia dos Bispos (2014, em Aparecida), o teólogo jesuíta, Pe. Mario de França Miranda, ao analisar a conjuntura eclesial à luz da Exortação Apostólica Gaudium Evangelii, destacou a necessidade e os caminhos de renovação da Igreja e sua relação com a sociedade:
A história é fundamental para compreendermos a sociedade e a Igreja em que vivemos, pois, acertos e erros do passado repercutem ainda fortemente em nossos dias. O advento da modernidade repercutiu na posição da Igreja na sociedade, privando-a de sua anterior influência em muitos setores, de seus privilégios, do monopólio da educação e da assistência social. João XXIII conclamou o Concílio Vaticano II que aceitou dialogar com a sociedade civil, avaliar a cultura da modernidade assumindo alguns de seus elementos, atualizar sua pastoral levando a sério o contexto vital dos católicos, promover a inculturação da fé e as Igrejas Locais.
O atual contexto sociocultural não é exatamente o mesmo da época do Vaticano II. No momento em que os membros da Igreja estão vivendo nesta sociedade que os faz experimentar desafios existenciais, pluralidade de discursos, ausência de referências sólidas, condicionamentos culturais, individualismo reinante, excesso de informações, aceleração do tempo, superficialização da vida, é somente nesta situação concreta que poderão viver a sua fé.
A Exortação Evangelii Gaudium indica caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos: uma Igreja missionária e descentrada, cujo sentido é estar a serviço da implantação do Reino de Deus; ela não é fim, ela é meio, instrumento de Deus, sinal e sacramento da salvação, pois deve visibilizar que este Reino não é uma utopia, mas uma realidade no interior da história da humanidade pelo testemunho de vida dos cristãos. Todo o sentido da vida de Cristo foi realizar o Reino de Deus na humanidade. Este Reino implica assumir o comportamento de Jesus que “passou por este mundo fazendo o bem” (At 10,38), mas conota também uma dimensão social, pois o indivíduo só pode ser feliz numa sociedade que reconheça e concretize o amor fraterno e a justiça. Esta tarefa de proclamar e realizar a Boa-Nova constitui o objetivo da evangelização e foi confiada por Jesus a seus discípulos e seguidores. Estes constituem uma comunidade de fiéis, constituem a Igreja.
Uma Igreja inculturada: se a Igreja Local quer ser entendida como sinal da salvação deve assumir a linguagem, categorias mentais, gestos, costumes, o saber e as artes da cultura onde se encontra inserida. A comunidade eclesial deve acolher em si as transformações necessárias para poder levar a cabo sua missão. “A graça supõe a cultura e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (115).
Uma Igreja de discípulos missionários: todos os membros da Igreja constituem o Povo de Deus, todos estão incumbidos de proclamar a Boa-Nova de Jesus para a sociedade. Todos gozam de igual dignidade e ação comum (LG 32), todos participam ativamente da ação evangelizadora da Igreja no mundo, sentido último da própria comunidade eclesial que eles próprios constituem. Os leigos são “verdadeiros sujeitos eclesiais”, interlocutores competentes entre a Igreja e a sociedade (DAp 497a). Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização (120).
Uma Igreja que testemunhe na vida a sua fé em Jesus Cristo: toda renovação eclesial implica um retorno ao mais nuclear da fé cristã, à vivência cristã das primeiras comunidades. “Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo”, pois “não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito”, “permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser” (280). Uma Igreja dos pobres: somos chamados (cada cristão e cada comunidade) a ser instrumentos de Deus a serviço da libertação e promoção dos pobres (187); "A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes” (DAp 31).