“Não abandono a cruz, mas permaneço de maneira nova perto do Senhor Crucificado”, afirmou Bento XVI no dia 27 de fevereiro, na última audiência geral, na praça de São Pedro, em Roma.
Nossa vida é uma caminhada rumo à Páscoa. Estamos vivendo o tempo da Quaresma que nos convida à conversão, ou seja, a um processo contínuo de mudança de vida. Este é um tempo de fé e resistência.O caminho da conversão quaresmal é, de fato, um tempo precioso de graça oferecido por Deus. É nesta caminhada de conversão quaresmal que vivenciamos o amor solidário, a oração e o jejum. Trata-se de um processo que leva a transformações profundas, nos ajudam a reorientar nossa vida, a mudar de direção, a deixar de caminhar numa estrada para andar numa outra e a aderir radicalmente ao projeto de Deus, ao Reino de Deus, que satisfaz plenamente as aspirações do ser humano.
Ao iniciar o ministério petrino, em sua primeira homilia como Papa (24/04/2005), Bento XVI disse: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me, contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”. Ao encerrar os oito anos de seu pontificado, o papa reafirma sua caminhada rumo à Páscoa definitiva: “Sou simplesmente um peregrino que inicia a última etapa de sua peregrinação nesta terra.. sigamos adiante com o Senhor para o bem da Igreja e do mundo”.
Continuamos caminhando com Jesus a Jerusalém, é nesse caminho que se situa o texto do evangelho deste 3º domingo da Quaresma. O evangelista (Lc 13,1-9) faz dessa caminhada um verdadeiro itinerário teológico de libertação, ao longo do qual se torna evidente quem se solidariza com o projeto de Deus e quem lhe oferece obstáculos. Jerusalém sinaliza o fim trágico da vida terrena de Jesus de Nazaré e o início de sua presença ressuscitada no meio do povo.
Os diversos acontecimentos tornam-se chamados à conversão, a voltar a Deus, a mudar nossos critérios, atitudes e ações para que colaborem com seu Plano de vida para toda a criação. As palavras de Jesus: “E se vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo”, soam como um grande apelo à nossa consciência. É um convite para olhar nossa vida, não pelo medo ou culpa, mas pelo amor de Deus que quer que todos e tudo viva, e viva em abundância!
O final do evangelho deste domingo nos oferece uma parábola, que ilustra mais a misericórdia divina. Segundo o texto, no meio da vinha se encontra uma figueira, que simboliza o povo eleito. O que acontece ao povo de Deus, tão querido e cuidado por Ele que não dá fruto? O surpreendente na parábola é a intervenção do agricultor diante da árvore infrutífera que esgota a terra: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e por adubo. Quem sabe, no futuro ela dará fruto! Se não der, então a cortarás”. Não só pede que não a corte, senão se oferece para dar-lhe um cuidado especial!
Não há dúvida de que o Apóstolo Paulo está certo ao afirmar que a paciência de Deus é nossa salvação! A Quaresma é uma nova oportunidade que Deus nos dá. Ele se apresenta como o simples agricultor para trabalhar a terra de nosso coração, regar-nos e adubar-nos com seu Espírito e Palavra. Deus oferece sua graça, mas precisa de nossa reposta, de nossa disponibilidade para fazer acontecer em nós o seu reino de vida (J. Konings).
Em Cristo, todos os caminhos conduzem sempre ao encontro do Pai e do seu amor (DM 1). Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo de vida e com as suas ações, como está presente o amor no mundo em que vivemos e tal amor transparece especialmente no contato com o sofrimento, injustiça e pobreza; no contato com toda a condição humana histórica, que de vários modos manifesta as limitações e a fragilidade, tanto físicas como morais, do homem. Precisamente o modo e o âmbito em que se manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica “misericórdia” (DM3).
Fruto da V Conferência Geral do episcopado da América Latina e Caribe, este documento propõe a renovação missionária da Igreja. Lançando um olhar evangélico sobre os povos latino-americanos, o Documento de Aparecida reconhece uma série de “rostos sofredores que devem doer também em nós”: pessoas que vivem nas ruas das grandes cidades, migrantes, enfermos, dependentes de droga, encarcerados (DAp 404-430).
O texto educa à compaixão e propõe a misericórdia para com todos, preferencialmente os mais pobres. Optar por estes irmãos mais necessitados não é um ato ideológico ou classista, mas expressão de autêntico amor evangélico: “Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes visitar-me” (Mt 25,35-36). Deste modo se realiza “a caridade que em qualquer lugar anima gestos, obras e caminhos de solidariedade para com os mais necessitados e desamparados” (DAp7).
Antiga e sempre nova, a misericórdia alcançou o Terceiro Milênio como bem-aventurança, profecia e terapia. Como bem-aventurança, a misericórdia aproxima o Reino de Deus das pessoas, e as pessoas do Reino de Deus. É prática que dignifica o ser humano: tanto quem a dá, quanto quem a recebe. Está repleta de gratuidade e alegria, como disse Jesus: “Felizes os misericordiosos, pois alcançarão misericórdia” (Mt 5,7).
As obras de misericórdia são também profecias da justiça do Reino, que supera toda fronteira de raça, credo ou ideologia: diante da humanidade ferida e carente, somos servidores da vida e da esperança, dentro e fora da Igreja, a fim de que “todos tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10,10).
Jesus nos indicou o exemplo do bom samaritano para mostrar a todos que a misericórdia não aceita fronteiras! Enfim, a misericórdia é também terapia: compaixão que restaura, toque que regenera e cuidado que aquece. As obras de misericórdia têm eficácia curadora: socorrem nossa humanidade ferida pelo pecado e pelo desamor, restaurando em nós a imagem do Cristo glorioso, para que suas feições resplandeçam na nossa face, na face da Igreja, na face de toda a humanidade redimida (M. Maçaneiro).
Considerando a missão da Igreja, a encíclica “Dives in misericórdia” do papa João Paulo II, situa a evangelização no horizonte das inquietudes humanas para, depois, propor o apostolado da misericórdia como oferta de salvação e realização plena da justiça. Entre as fontes de inquietude para o mundo de hoje, estão: a violência, as armas atômicas, a tortura, a ameaça biológica, a miséria, a fome, a mortalidade infantil e o subdesenvolvimento. Diante disto, a encíclica interroga: “Será suficiente a justiça?”
Possa a Quaresma, neste Ano da Fé, nos ajudar a viver este processo de conversão, pois a Páscoa é urgente para todos e só pode acontecer se nós discípulos assumirmos nossa ressurreição.
O convite do apóstolo Paulo ao discípulo Timóteo para procurar a fé (2Tm 2,22) com a mesma constância de quando era novo (2Tm 3,15) também é dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé.
A Fé é companheira de vida e nos permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (Cl 1,24) são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai (PF 15).
Intensifiquemos, nesse período, “nossas orações pelos cardeais, que são chamados para uma tarefa tão importante, e pelo novo sucessor de Pedro, para que o Senhor o acompanhe com a luz e o poder de Seu espírito” (Bento XVI).