A liturgia de hoje revela como uma lei deve ser entendida (Mt 5, 17-37). Cumprir a lei significa buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que as pessoas tenham vida e relações mais fraternas. A lei não deve ser observada simplesmente por ser lei, mas por aquilo que ela realiza de justiça. Por sua vez, somente quem aprofunda a própria fé possui a verdadeira sabedoria (1Cor 2,6-10). Diante da violência e de tantos males que desafiam a sociedade (Eclo 15,15-20), somos convocados a rever se nossas decisões e projetos beneficiam o bem comum.
Para instaurar a vida política verdadeiramente humana nada melhor do que desenvolver o sentido de justiça, de benevolência e de serviço do bem comum, e reforçar as convicções fundamentais acerca da verdadeira índole e também do fim da comunidade política, e corroborar o exercício reto e os limites da autoridade pública (GS, 73).
Odocumento “A Igreja e as Eleições”, aprovado pelos bispos durante a 51ª Assembleia Geral da CNBB (10-19/04/2013), sintetiza a reflexão sobre o papel da Igreja na vida política do país e oferece as bases para as cartilhas e orientações que as dioceses, paróquias e comunidades estão apresentando para o período eleitoral de 2014.
Trata-se, portanto de um subsídio para reflexão; um instrumento que pretende iluminar nossas comunidades em suas reflexões sobre o compromisso do cristão com a política. Recorda o trabalho de conscientização política feito pela Igreja e sua participação em importantes conquistas no campo político-eleitoral, como as leis de iniciativa popular (Lei 9840 e Lei da Ficha Limpa).
Insiste, mais uma vez, que a militância político-partidária é própria dos leigos e não dos ministros ordenados e que o engajamento da Igreja na vida política do país se dá em decorrência de sua fé em Jesus Cristo e não “por questões meramente ideológicas”. Reafirma a independência e a autonomia que devem marcar as relações entre a comunidade política e a Igreja “mesmo que trabalhem, tendo por escopo, o bem estar da comunidade humana”. Esclarece a atuação da Igreja nas campanhas eleitorais ao afirmar que a Igreja se pautará pela conduta ética, “trabalhando para que os fiéis tenham plena consciência de seus deveres mais amplos com a sociedade”.
Basta acompanhar a vida política de nosso país para se constatar a grande contribuição da Igreja para o aperfeiçoamento da vida democrática no Brasil e a lisura das suas instituições: há uma prática que se prolonga já por alguns anos de elaboração de pequenas cartilhas, visando orientar os eleitores católicos sobre a responsabilidade do voto. Trata-se de um exercício de ir ajudando o povo na formação da consciência cidadã. Com o desenvolvimento tecnológico, tais cartilhas, em muitas partes, foram substituídas por vídeos para TV e internet e spots para rádios, mas sempre mantendo o mesmo escopo: desenvolver junto ao povo católico o hábito do debate sobre os destinos de nossos municípios, estados e país. Há iniciativas envolvendo comunidades, paróquias e dioceses, na perspectiva da promoção de debates entre candidatos, no intuito de conhecer melhor as pessoas e programas daqueles que se apresentam para governar ou legislar nas mais diferentes esferas do poder. Além disso, a formação da consciência política dos fiéis leigos não fica restrita somente a períodos eleitorais.
O empenho de se moralizar as campanhas políticas e o processo eleitoral já se tornaram marca fundamental de uma Igreja comprometida com a ética. A criação da lei 9840, contra a corrupção eleitoral, teve a coordenação nacional da Comissão Brasileira Justiça e Paz, órgão vinculado a CNBB, com o apoio maciço do episcopado nacional. Tal evento ganhou enorme importância e eficácia na moralização eleitoral. Hoje já são mais de 667 políticos cassados. Em decorrência das articulações para a elaboração do Projeto de Iniciativa Popular que deu origem à Lei 9840, foi criado o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral integrado por mais de 50 entidades da sociedade civil, com mais de 200 comitês espalhados por todo o Brasil.
Outra campanha vitoriosa foi a da Ficha Limpa. Trata-se da Lei Complementar nº. 135 de 2010, uma emenda à Lei das Condições de Inelegibilidade ou Lei Complementar nº. 64 de 1990, originada de um projeto de lei de iniciativa popular idealizado por integrantes do MCCE, destacando-se a CNBB, CBJP, Cons. Nac. do Laicato, Cáritas, OAB Nacional. O projeto da Ficha Limpa reuniu cerca de 1,3 milhões de assinaturas com o objetivo de aumentar a idoneidade dos candidatos. A participação ativa das comunidades católicas na campanha pelas assinaturas foi fundamental. Nas eleições de 2012, a primeira sob o efeito da Lei da Ficha Limpa, tivemos mais de 1500 casos de cassação de candidaturas no país. Desta forma, a Igreja vem dando sua significativa contribuição para uma política mais ética e voltada para os reais interesses da população. Mais do que uma lei, vem se impondo em diversos lugares uma espécie de “cultura da ficha limpa”, onde outros setores, por analogia, têm procurado aplicar o sentido da lei, ou seja, usam o conceito de ficha limpa para montar secretariado, contratar empresas e pessoas.
No entanto, as eleições estão se aproximando e ainda não há garantia que todos os candidatos “ficha suja” terão suas candidaturas barradas. Isso porque no processo de candidatura, são exigidas somente as Certidões Criminais e não as Certidões Cíveis dos candidatos. Sem as Certidões Cíveis, fica difícil enquadrar candidatos “ficha suja” dentro da Lei Ficha Limpa, pois não haverá como checar se estes candidatos respondem aos processos cíveis que os eliminariam das eleições. Dessa forma o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que é apoiado pela CNBB pede que apoiemos o Abaixo Assinado pedindo que o Tribunal Superior Eleitoral inclua certidões cíveis na documentação exigida para o registro dos candidatos. Os Ministros do TSE têm somente até o dia 5 de março para aprovar a resolução que inclui Certidões Cíveis nas candidaturas (V. Abaixo assinado/site MCCE).
A 4ª reflexão do documento “Igreja e Eleições” trata da atuação dos leigos na vida partidária. A política partidária está em contraste com o ministério ordenado, porque este deve estar acima das facções políticas e servir a todos indistintamente. Por outro lado, isso não exime qualquer fiel, incluindo os clérigos, de seu dever para com a transformação da realidade social. Assim como se tem claro que não cabe ao clérigo assumir diretamente um cargo político, é preciso ter claro que é dever da Igreja, a formação de leigos para que estejam aptos para essa missão. A presença qualificada de católicos no mundo da política tornará a fé cristã ainda mais relevante na organização da sociedade democrática, pois não há contradição entre democracia e religião.
A Igreja sempre estará como uma sentinela pronta a defender os direitos, sobretudo dos pobres, da família, dos pais a educar os filhos, da luta contra a corrupção, da exigência de plena transparência na administração pública, e a vida em todas as situações, desde a fecundação até a morte natural. Porém, não cairá na tentação de buscar constituir uma bancada parlamentar católica, que tenha feições confessionais. Pautar-se-á sempre pela conduta ética, em todas as campanhas, trabalhando para que os fiéis tenham plena consciência de seus deveres mais amplos com a sociedade e não se limitará a defender seus interesses institucionais. Também evitará emitir notas e pareceres que defendam ou atinjam diretamente este ou aquele candidato, por causa de filiação partidária ou identificação com esta ou aquela denominação cristã, mas não se furtará a defender os valores emanados da sua fé no Evangelho de Nosso Senhor.
De modo algum, a Igreja se confunde com a comunidade política e nem pode ser identificada com um sistema político. Ambas as instâncias devem respeitar a independência e autonomia de cada uma, mesmo que trabalhem, muitas vezes, tendo por escopo as mesmas aspirações, ou seja, o bem estar da comunidade humana.
Buscar o justo equilíbrio na participação da comunidade cristã nos momentos em que as campanhas políticas ganham as ruas do país é dever de todos os que acreditam na eficácia do fermento evangélico na transformação das realidades sociais e políticas. Imiscuindo-se na política partidária a Igreja pode não dar a sua real contribuição, porém, omitindo-se da participação na política, sobretudo, da preparação concreta dos fiéis leigos para nela atuarem, negligencia parte significativa de sua missão evangelizadora.