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Dom Moacyr

O caminho da solidariedade


 
     Estamos próximos do período quaresmal: de um lado, o Carnaval com seus desfiles e blocos e ainda, famílias que se preparam para a Quaresma com  encontros comunitários e retiros. De outro, uma tragédia ecológica prevista: a inundação do Rio Madeira atingindo e crucificando milhares de famílias e inúmeras comunidades tradicionais, impactadas ou não pelas hidrelétricas, que também foram afetadas e estão isoladas.
 
     Das inundações, disse certa vez Eduardo Galeano: “Espero que elas sirvam pelo menos para ressaltar que devemos deixar de chamá-las catástrofes naturais. Sim, são catástrofes, porém são o resultado do sistema de poder que enviou o clima ao manicômio”.
 
Em meio ao sofrimento de tantas famílias, o caminho da solidariedade toma forma e somos possuídos pela força da vida, da esperança, do amor. Somos humanos; somos cristãos.A Quaresma é sempre um convite à solidariedade. A CNBB promove, todos os anos, a Campanha da Fraternidade. Sempre em torno de um tema social. O deste ano é o combate ao tráfico humano e tem como lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1)
 
     A liturgia deste domingo propõe uma nova justiça (Mt 5,38-48). Mostra que a força do amor solidário é capaz de interromper toda forma de violência. Somos convidados a realizar ações capazes de afirmar a dignidade e a igualdade, não a submissão passiva diante de situações opressoras; a viver a fraternidade com quem necessita de nossa ajuda. Paulo Apóstolo incentiva-nos a ser o lugar onde Deus reside e se revela a todos (1Cor 3,16-23). Dessa forma estaremos em comunhão com Deus e seremos santos (Lv 19,1-2.17-18), pois a santidade passa também pelo amor ao próximo.
 
     O papa Francisco, em sua Mensagem para a Quaresma de 2014, exorta-nos a trilhar o caminho da solidariedade que pressupõe o “caminho pessoal e comunitário de conversão”:
 
     Por ocasião da Quaresma, ofereço-vos algumas reflexões com a esperança de que possam servir para o caminho pessoal e comunitário de conversão. Como motivo inspirador, tomei a frase de São Paulo: “Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9).
 
     Tais palavras dizem-nos, antes de tudo, qual é o estilo de Deus. Deus não Se revela através dos meios do poder e da riqueza do mundo, mas com os da fragilidade e da pobreza: “sendo rico, Se fez pobre por vós”. Cristo, o Filho eterno de Deus, igual ao Pai em poder e glória, fez-Se pobre; desceu ao nosso meio, aproximou-Se de cada um de nós; despojou-Se, esvaziou-Se, para Se tornar em tudo semelhante a nós (Fil 2,7; Heb 4,15).
 
     A encarnação de Deus é um grande mistério. A razão de tudo isso é o amor divino: um amor que é graça, generosidade, desejo de proximidade, não hesitando em doar-Se e sacrificar-Se por suas amadas criaturas. O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Foi o que Deus fez conosco. Na realidade, Jesus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano (GS 22).
 
     A finalidade de Jesus de se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas, como diz São Paulo, “para vos enriquecer com a sua pobreza”. Não se trata dum jogo de palavras, pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! Quando Jesus desce às águas do Jordão e pede a João Batista para batizá-lo, não o faz porque tem necessidade de penitência, de conversão; mas fá-lo para se colocar no meio do povo necessitado de perdão, no meio de nós pecadores, e carregar sobre Si o peso dos nossos pecados.
 
     Este foi o caminho que Ele escolheu para nos consolar, salvar, libertar da nossa miséria. Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e nos torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-Se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na beira da estrada (Lc 10,25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha. A pobreza de Cristo, que nos enriquece, é Ele fazer-Se carne, tomar sobre Si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus. Quando Jesus convida-nos a tomar sobre nós o seu jugo suave (Mt 11,30), convida-nos a enriquecer-nos com esta sua rica pobreza e pobre riqueza, a partilhar com Ele o seu Espírito filial e fraterno, a tornar-nos filhos no Filho, irmãos no Irmão Primogênito (Rm 8,29).
 
     Foi dito que a única verdadeira tristeza é não ser santos (Léon Bloy); poder-se-ia dizer também que só há uma verdadeira miséria: é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo. Poderíamos pensar que este caminho da pobreza fora o de Jesus, mas não o nosso: nós, que viemos depois d'Ele, podemos salvar o mundo com meios humanos adequados. Isto não é verdade. Em cada época e lugar, Deus continua a salvar os homens e o mundo por meio da pobreza de Cristo, que Se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres.
 
     À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para aliviá-las. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual.
 
     A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiênicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.
 
     Não menos preocupante é a miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros, frequentemente jovem, se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspectivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se veem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína econômica, anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor.  O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.
 
     Possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo todas as pessoas.

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