Questionado, certa vez, se um papa poderia renunciar Bento XVI respondeu: “Sim. Quando um papa chega à clara consciência de já não se encontrar em condições físicas, mentais e espirituais de exercer o encargo que lhe foi confiado, então tem o direito e, em algumas circunstâncias, também o dever de renunciar” (livro Luz do Mundo). Apesar da comunicação de sua renúncia não me surpreender, considero a grandeza de seu gesto um ato de fé e coragem.
O ato de renunciar à função do Bispo de Roma está claro nos cânones 331 a 335 do Código de Direito Canônico (também reafirmado no Concilio Vaticano II):
Cân.331: O Bispo da Igreja de Roma, no qual permanece o múnus concedido pelo Senhor de forma singular a Pedro, o primeiro dos Apóstolos, para ser transmitido aos seus sucessores, é a cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo e Pastor da Igreja universal neste mundo; o qual, por consequência, em razão do cargo, goza na Igreja de poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente.
Cân.332: §1. O Romano Pontífice, pela eleição legítima por ele aceite juntamente com a consagração episcopal, adquire o poder pleno e supremo na Igreja. Pelo que, o eleito para o pontificado supremo se já estiver dotado com carácter episcopal, adquire o referido poder desde o momento da aceitação. Se, porém, o eleito carecer do carácter episcopal, seja imediatamente ordenado Bispo. §2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.
Cân.333: §1. O Romano Pontífice, em razão do cargo, não só goza de poder em toda a Igreja, mas adquire também a primazia do poder ordinário sobre todas as Igrejas particulares e seus agrupamentos, com a qual ao mesmo tempo se corrobora e defende o poder próprio, ordinário e imediato, que os Bispos possuem sobre as Igrejas particulares confiadas aos seus cuidados. §2. O Romano Pontífice, no desempenho do seu múnus de Pastor supremo da Igreja, está sempre unido em comunhão com os outros Bispos e mesmo com toda a Igreja; tem, contudo o direito de, segundo as necessidades da Igreja, determinar o modo, quer pessoal quer colegial, de exercer este múnus. §3. Contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice não há apelação nem recurso.
Cân.334: No exercício do seu cargo, o Romano Pontífice é assistido pelos Bispos, que o podem ajudar com a sua cooperação por diversas formas, entre as quais o Sínodo dos Bispos. Auxiliam-no também os Padres Cardeais, e ainda outras pessoas e várias instituições segundo as necessidades dos tempos; todas estas pessoas e instituições, em nome e por autoridade dele, desempenham a missão que lhes foi confiada, para o bem de todas as Igrejas, e em conformidade com as normas definidas no direito.
Cân.335: Durante a vagatura ou total impedimento da Sé romana, nada se inove no governo da Igreja universal; observem-se as leis especiais formuladas para tais circunstâncias.
Muitas pessoas se perguntam: o papa pode realmente renunciar?Paulo VI temia criar um precedente que poderia incentivar facções na Igreja a pressionar futuros papas a renunciarem por outras razões que não a saúde. No entanto, não somente o Código de Direito Canônico previa a renúncia de um papa, mas ainda os regulamentos estabelecidos por Paulo VI em 1975 e por João Paulo IIem 1996.
Segundo o teólogo jesuíta da Universidade de Georgeton, Thomas Reese, até 10 papas na história podem ter renunciado, mas as provas históricas são limitadas: Clemente I (92?-101), Ponciano (230-235), Ciríaco (?), Marcelino (296-304), Martinho I (649-655), Bento V (964), Bento IX (1032-1045), Gregório VI (1045-1046), Celestino V (1294), Gregório XII (1406-1415).
Por ocasião de sua visita à cidade de L’Aquila (28/4/2009), o papa rezou pelas vítimas do terremoto e visitou a basílica de Nossa Sra. de Collemaggio, onde a relíquia do papa Celestino V (1209-1296) tinha ficado a salvo dos tremores e da destruição. Junto ao túmulo, o papa depositou seu pálio e esse gesto ganhou força na semana passada, dia 11 de fevereiro, quando Bento XVI anunciou sua renuncia diante doscardeais que estavam reunidos no consistório para decidirem, juntamente com o Pontífice, temas importantes:
Caríssimos Irmãos, convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20h, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.
Caríssimos Irmãos, verdadeiramente de coração, agradeço-vos por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.
A Igreja do Brasil, diante do anúncio feito pelo Santo Padre Bento XVI, manifestou, através de Mensagem da CNBB, que acolhe “com amor filial as razões apresentadas por Sua Santidade, sinal de sua humildade e grandeza, que caracterizaram os oito anos de seu pontificado”. E afirma que “o curto período de seu pontificado foi suficiente para ajudar a Igreja a intensificar a busca da unidade dos cristãos e das religiões através de um eficaz diálogo ecumênico e inter-religioso, bem como para chamar a atenção do mundo para a necessidade de voltar-se ao Deus criador e Senhor da vida”.
A CNBB é grata a Sua Santidade pelo carinho e apreço que sempre manifestou para com a Igreja no Brasil. A sua primeira visita intercontinental, feita ao nosso País em 2007, para inaugurar a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, e, também, a escolha do Rio de Janeiro para sediar a Jornada Mundial da Juventude, no próximo mês de julho, são uma prova do quanto trazia no coração o povo brasileiro. E agradece a Deus o dom do ministério de Sua Santidade Bento XVI a quem continuará unida na comunhão fraterna, assegurando-lhe suas preces. Conclama “a Igreja no Brasil a acompanhar com oração e serenidade o legítimo processo de eleição do sucessor de Bento XVI”, confiando “na assistência do Espírito Santo e na proteção de Nossa Senhora Aparecida, neste momento singular da vida da Igreja de Cristo”.
Concluindo, gostaria de fazer a mesma pergunta que o cardeal Martini fez em sua última entrevista antes de falecer: o que você pode fazer pela Igreja?Ele nos aconselha três instrumentos muito fortes: o 1º é a conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. O 2º é a Palavra de Deus. Somente quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. Os sacramentos (3º instrumento) não são uma ferramenta para a disciplina, mas sim uma ajuda para as pessoas nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida.
A fé é o fundamento da Igreja. Possam a fé, a confiança, a coragem fortalecerem a nossa caminhada e a esperança no futuro, lembrando que somente o amor vence o cansaço.