Na Quarta-Feira de Cinzas, durante o rito da imposição das cinzas, foi repetido para cada um de nós: “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”. E podemos acrescentar com Joao Paulo II: “Lembra-te, homem, da tua vocação primária: tu provéns de Deus; e tu voltas para Deus caminhando no sentido da Ressurreição, que é a via traçada por Cristo”.
Com esta lembrança, fomos marcados com o sinal da cruz e iniciamos nosso retiro quaresmal de 40 dias em preparação à grande festa da fé cristã que é a Páscoa. “Quem não carrega a sua cruz e me segue não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Somos convidados, nesta Quaresma, a iniciar junto com Jesus a passagem pelo deserto, de maneira semelhante como a antigo povo de Israel partiu durante quarenta anos pelo deserto para ingressar na terra prometida.
Que estes sejam dias de conversão pessoal e comunitária, para abraçarmos mais plenamente o projeto de Jesus: “um tempo de verdade profunda, que converte e restitui a esperança”, levando-nos a repor tudo no seu devido lugar e a nos identificar com Cristo em sua dor.
Nosso povo amazonida, sobretudo, rondoniense e acreano, sofre hoje a mesma paixão que Jesus viveu. “Se quiserdes honrar o Corpo de Cristo, não o desprezeis quando está nu; não honreis Cristo eucarístico com paramentos de seda, ignorando aquele outro Cristo que, fora dos muros da Igreja, sofre o frio e a nudez” (S. João Crisóstomo).
A Quaresma é um tempo de solidariedade, partilha e abnegação, porque nos recorda quem somos. Diante da mesa farta e uma existência cômoda, estamos sendo interpelados por milhares de famílias que perderam tudo e passam privações e necessidades. Se cada um procurar que seus irmãos e irmãs possam entrar a ter parte na sua própria vida, se compartilhar com eles os próprios bens, que não apenas as sobras, terá superado os múltiplos obstáculos que se opõem à reconciliação e chegará, através do desapego, à renovação de si mesmo e à reconciliação com Deus e com os irmãos.
Paulo VI, em uma de suas mensagens quaresmais, reforça que tais palavras só poderão ser traduzidas na prática, mediante uma ruptura com as situações de pecado, de injustiça e de egoísmo. A ruptura com um apego demasiado exc1usivista aos nossos bens materiais, quer eles sejam abundantes, como no caso do rico Zaqueu (Lc 19,8), quer sejam escassos, como no caso da viúva louvada por Jesus (Mc 12,43).
Na linguagem figurada do seu tempo, São Basílio pregava àqueles que se encontravam em ótima situação: “o pão que em vossa casa fica como sobra inútil é o pão daqueles que passam fome; a túnica que está dependurada no vosso guarda-vestidos, é a túnica daquele que está nu; os sapatos a mais que nas vossas habitações permanecem inúteis são os daqueles que andam descalços; o dinheiro que vós conservais aferrolhado é o dinheiro do pobre: vós cometeis tantas injustiças, quantas são as obras de bem-fazer que poderíeis praticar .
Iniciamos a 1ª semana da quaresma com esta disposição renovada de mudança. A Igreja nos oferece para esta caminhada pelo deserto quaresmal, ferramentas para permanecer junto com Jesus servindo ao Pai e a suas criaturas: o jejum, a esmola e a oração. A liturgia convida-nos a superar as tentações, a exemplo de Jesus e a perseverarmos no bem e na fé.
Jesus vence ao Diabo permanecendo fiel e servindo até as últimas consequências ao Projeto do Pai (Mt 4,1-11). Tendo sofrido as tentações e vencendo-as Ele vem em auxilio daqueles que são também provados, tentados a abandonar do Projeto do Pai e servir outros projetos (Ihu). Jesus nos ensinou o caminho de superação das tentações do poder em sua tríplice dimensão: econômica, política e religiosa. É claro que a economia, a política e a religião podem ser meios privilegiados para a construção do reino de justiça, paz e fraternidade no mundo, desde que sejam organizadas como serviço dedicado e honesto ao próximo, principalmente às pessoas mais necessitadas (VP).
Somos fruto da iniciativa amorosa de Deus. Em seu desígnio de amor, criou o ser humano em íntima união com a mãe terra. Em sua providência generosa, garante as condições de vida digna para todas as pessoas. Deu-nos a missão de cuidar de todas as coisas, sem cair na tentação de “comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal”, isto é, de entrar na ideologia do poder, que tende a dominar as pessoas e se apossar do que é de todos. É preciso respeitar e promover o princípio da soberania de Deus sobre todas as coisas e administrá-las com justiça, evitando toda espécie de exploração (Gn 2,7-9; 3,1-7).
Somos portadores da graça divina. Com sua obediência radical à vontade do Pai, Jesus nos trouxe a graça da libertação de todos os males e a vida em plenitude. Seguindo seus passos, podemos ser portadores da graça divina, defendendo e promovendo o direito à vida digna sem exclusão (Rm 5,12-19). Deus jamais abandona as suas criaturas. Ele é criador e também libertador. Por isso, como máxima expressão do seu amor, enviou o seu Filho, Jesus Cristo, para nos libertar de todos os males, com suas consequências. Se pelo pecado de Adão entrou a morte no mundo, pela graça de Jesus Cristo nos é dada a redenção.
Qual é a alegria de Deus? Perguntou certa vez o Papa Francisco. “É perdoar”, respondeu imediatamente. A alegria de Deus é perdoar! É a alegria de um pastor que reencontra a sua ovelha; a alegria de uma mulher que reencontra a sua moeda; é a alegria de um pai que recolhe em casa, o filho que estava perdido, estava morto, e voltou à vida. Aqui está todo o Evangelho, todo o Cristianismo!
Experimentemos nesta 1ª semana da quaresma, a alegria de perdoar e ser perdoado. Façamos a experiência da misericórdia divina (Sl 50). Se no nosso coração, não há misericórdia, a alegria do perdão, não estamos em comunhão com Deus, mesmo se observamos todos os preceitos, porque é o amor que salva, não só a prática dos preceitos. A alegria nasce do sentir-se amado de modo novo por Deus, cada vez que seu perdão nos alcança através do sacerdote que nos dá em seu nome.
É assim que Deus se identifica: Ele ama você e está sempre pronto para perdoá-lo. Somente à luz da misericórdia podemos perceber a realidade do pecado em nossa vida, perceber o sofrimento de estar afastado de Deus que é Amor. Oremos juntos: Senhor, abri os nossos olhos para vermos o mal que praticamos, e tocai os nossos corações para que nos convertamos a vós sinceramente. Que o vosso amor reconduza à unidade aqueles que o pecado dividiu e dispersou; que o vosso poder cure e fortaleça os que em sua fragilidade foram feridos; que o vosso espírito renove para a vida os que foram vencidos pela morte(liturgia da quaresma).
Possa cada um de nós abrir seu coração para o perdão e enterrar de vez as mágoas e rancores que ainda guarda dentro de si. Pois, como reflete o beatoCharles de Foucauld (1858-1916), o amor não consiste em sentirmos que amamos, mas em querermos amar. Quando queremos amar, amamos; quando queremos amar acima de tudo, amamos acima de tudo. Se acontecer sucumbirmos a uma tentação, é porque o amor é demasiado fraco, não é porque ele não exista. É preciso arrependermo-nos como São Pedro.. também como ele, dizer três vezes: “Amo-Vos; vós sabeis que, apesar das minhas fragilidades e pecados, eu Vos amo” (Jo 21,15ss).
Lembremos sempre uns aos outros esta história dupla: a das graças que Deus nos deu pessoalmente desde o nascimento e a das nossas infidelidades; e aí acharemos motivos infinitos para nos perdermos, com ilimitada confiança, no Seu amor. Ele ama-nos porque é bom, não porque somos bons; não amam as mães os filhos desencaminhados? E muitas razões havemos de encontrar para nos enterrarmos na humildade e na falta de confiança em nós próprios. Procuremos resgatar um pouco os nossos pecados pelo amor ao próximo, pelo bem feito ao próximo. A caridade para com o próximo, os esforços para fazer bem aos outros são um excelente remédio a opor às tentações.
Expressemos, portanto, a verdade de uma vida renovada pela graça do perdão, exclamando com São Francisco: Senhor, onde há ofensa, que eu leve o perdão. Onde há discórdia, que eu leve a união. Onde há erro, eu leve a verdade. Onde há dúvida, eu leve a Fé. Onde há desespero, eu leve a esperança. Onde há tristeza, que leve alegria. Senhor, que eu não busque tanto ser consolado, mas consolar, ser compreendido, mas compreender, ser amado, mas amar.