A Quaresma começa na 4ª Feira de Cinzas e é o período preparação à celebração da Páscoa. É tempo de sacrifício e penitência; de comunhão e solidariedade.
Qual o sentido da quaresma diante de milhares de vítimas de guerras e catástrofes; diante da “multidão imensa daqueles que todas as sociedades do mundo deixam à beira do caminho, feridos no corpo e na alma, despojados da sua dignidade humana, sem pão, sem voz, sem defesa e sozinhos no infortúnio” (Paulo VI); diante de irmãs e irmãos nossos, tão próximos de nós, sofrendo física e moralmente devido à inundação do Rio Madeira?
O Tempo da Quaresma é um convite à conversão que requer transformação das estruturas de morte. “Agora, portanto, voltem para mim de todo o coração, com jejum e lágrimas; rasguem o coração e não as roupas; voltem para Javé, pois Ele é piedade e compaixão; reúnam o povo, organizem a comunidade, chamem os velhos, os jovens, as crianças” (Jl 2,12-17).
Neste período somos chamados a “percorrer com Cristo o caminho que vai do deserto e das tentações e tensões à vitória, celebrada na Páscoa, sobre o mal e a morte” (VP).A reorientar a vida, mudar de direção, seguir pelo caminho da radicalidade, rumo ao projeto de Deus, revivendo a experiência do povo de Deus no deserto, que amadureceu sua fé, em meio ao sofrimento e ao exercício contínuo de caminhada rumo à terra prometida. “A cantar a dor que se sente pelo pecado do mundo, que, em todos os tempos e de tantas maneiras, crucifica os filhos de Deus e prolonga, assim, a Paixão de Cristo” (Guia Lit.Past/CNBB).
A liturgia deste 8º domingo do Tempo Comum ilumina nosso itinerário pascal, convidando-nos a buscar o Reino de Deus e a sua justiça. Jesus nos oferece a proposta do Reino de Deus, que se fundamenta na fraternidade, na simplicidade, no respeito à natureza, na solidariedade e na confiança em Deus, que sabe muito bem do que necessitamos(Mt 6,24-34).“Convida-nos a seguir seus passos: Ele é o caminho que nos conduz para Deus, a verdade que nos liberta e a vida que nos enche de alegria” (prefácio).
A Palavra lembra-nos, de forma sempre nova, que Deus nunca se esquece de nós, nem nos abandona. Ele cuida de nós com a ternura de mãe, ama-nos e nos protege como seus filhinhos muito amados (Is 49,14-15).
Podemos transformar as situações de sofrimento em oportunidade de graça benfazeja, de renovação da nossa confiança em Deus, cuja luz brilha nas trevas (1Cor 4,1-5). Paulo nos ensina a viver nossa missão neste mundo “como simples operários de Cristo”. Isso significa renunciar à pretensão de poder e prestígio social, ser coerentes com a fé que professamos e servir uns dos outros (VP).
A Campanha da Fraternidade, cuja Aberturaem Porto Velho acontece no dia 05 de março de 2014 às 9h no Salão da Catedral (Av. Carlos Gomes, 964), é um itinerário de libertação pessoal, comunitária e social. “Tráfico Humano e Fraternidade” é o tema da Campanha. O lema é inspirado na carta aos Gálatas: “É para a Liberdade que Cristo nos libertou” (5,1).
A CNBB escolheu como tema um desses atos perversos, que nos envergonham - o tráfico humano – a fim de despertar e reforçar na consciência dos brasileiros o repúdio por tal prática. Além disso, apela tanto para o Estado como para toda a sociedade civil a fim de que se empenhem em coibir tal iniquidade, ainda presente em nosso país.
Embora para muitos seja um tema distante, o tráfico internacional de pessoas é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas.
O Tráfico Humano viola a grandeza de filhos, é cerceamento da liberdade e o desprezo da dignidade dos filhos e filhas de Deus. Resgatar essa dignidade, identificar as práticas de tráfico humano e denunciá-lo são objetivos dessa Campanha da Fraternidade. Mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar o mal do Tráfico Humano, a Campanha propõe-se a reivindicar dos poderes públicos, políticas e meios para a reinserção das pessoas atingidas e sensibilizar para a solidariedade com ações preventivas.
Pe. Libanio (falecido em 30/01) deixou-nos uma reflexão sobre este tema, na Revista Vida Pastoral n.295: o tráfico humano se associa à escravidão. O Brasil aboliu-a, embora muito tardiamente, no fim do século XIX. No entanto, a escravidão se perpetua, sob diversas formas, ludibriando a Lei, a Justiça e a Ética.
Segundo a Agência das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, todos os anos, 800 mil a 2,4 milhões de pessoas são vítimas do tráfico de seres humanos no mundo. A OIT estima que o número alcance a cifra de 20,9 milhões. Se distinguirmos os dois tipos de tráficos, laboral e sexual, o 1º representa 78%, e o outro, 22%. Predomina a exploração feita pela economia privada em relação ao Estado (14,2 milhões contra 2,2 milhões). Especificando o tipo de pessoas, ainda que o número de homens seja maior (74%), espanta-nos o das crianças (26%) e das mulheres (55%). São 44% os migrantes afetados, sendo 15% internos ao Brasil, enquanto 29% são de fora. No campo sexual, a exploração de migrantes estrangeiros atinge proporção muito maior, 74%. Na Europa, 13% das mulheres sexualmente exploradas são sul-americanas.
Ainda na linha do fato, cabe incluir nessa maré de lama o tráfico de órgãos, removidos não somente de corpos clinicamente mortos, mas até cruelmente retirados de crianças vivas, normalmente pobres e submetidas de várias maneiras desde a compra até o roubo. O quadro de crimes se amplia por força da criatividade perversa do coração humano. No referente à exploração sexual, uma pesquisa nacional detectou dentro do Brasil 241 rotas de tráfico de exploração sexual, sendo 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 municipais (PNTMCA).
Por que o ser humano chegou à vileza de escravizar outros semelhantes quando já se alcançou consciência mundial da hediondez do crime? Se passarmos pelo crivo psicanalítico os “gatos”, os proprietários rurais mandantes, os gerentes criminosos de transnacionais, funcionários do próprio governo, administradores de empreiteiras e outras pessoas envolvidas com o tráfico laboral, sexual e de órgãos, encontraremos individualmente, traços neuróticos e psicóticos graves. No entanto, eles não explicam a amplitude do fenômeno.
Na raiz profunda, movem-se altos interesses econômicos que cegam as pessoas. Três dados pressionam o crime. Aí se juntam empreendimentos urgentes e vultosos, muitas vezes em rincões perdidos neste gigantesco país, com a carência de mão de obra barata e a ganância de lucros exorbitantes. A consciência moral se obscurece pelo tamanho economicamente sedutor do projeto.
Um lado da moeda. Doutro lado, defrontamo-nos com a vulnerabilidade de pobres em busca de sobrevivência. Uns habitam a região de longa data, outros vêm de países estrangeiros ou de outras regiões do Brasil. Quando os dois fatos se encontram, então o lance seguinte de aliciar trabalhadores de mil modos brota quase espontaneamente. Alguns segmentos parecem os mais ameaçadores: o agronegócio, principalmente da soja, cana e eucalipto, a pecuária e as empreiteiras. Os primeiros ocupam páginas elogiosas da imprensa capitalista porque o agronegócio ocupa mais de 22% do PIB nacional. Com finalidade tão maravilhosa, justificam-se os meios de arrebanhar e manter trabalhadores sob regime de escravidão.
Em face dos fatos e do processo de escravização de seres humanos, brota doloroso grito do fundo da consciência humana. Envergonha a humanidade constatar que, a realidade do tráfico humano ainda existe, violando os três propósitos do início da democracia. O trabalho escravo de homens, mulheres e crianças unido ao tráfico sexual violenta barbaramente a liberdade. O tráfico de seres humanos nos situa aquém da humanidade. É terrível reconhecer que, no Brasil e no mundo em que vivemos, mesmo nos países mais desenvolvidos, temos situações que recuam a tempos anteriores às descobertas de humanidade que se fizeram na história e que se consagraram na modernidade e na Declaração da ONU a respeito dos Direitos Humanos.
Retrocedemos a tempos bárbaros ou repetimos experiências facínoras de exploração do ser humano que infelizmente a modernidade presenciou no fascismo, no nazismo e no comunismo. Cabe então grito ético em alto e bom som. E toca ao Estado, enquanto o defensor dos cidadãos, e à sociedade civil, enquanto a expressão da consciência ética do país, assumir campanha incansável e intrépida contra a situação de escravidão humana ainda existente.