A crise política e econômica que hoje vivemos coloca em extrema situação de risco os povos indígenas, quilombolas e populações rurais e tradicionais, além de sinalizar para retrocessos significativos nas agendas políticas relativas àqueles segmentos mais desprotegidos e vulneráveis da sociedade brasileira.
Na última Assembleia da CNBB, a análise de conjuntura concentrou-se numa questão estrutural fundamental que marca o Brasil desde seu nascimento: a desigualdade social. As contradições políticas, econômicas, jurídicas e sociais implantadas e mantidas ao logo de sua história ainda são presentes até os dias atuais. Vivemos um período de desconstrução de direitos humanos e cidadania, contudo, sinais como a resistência dos povos indígenas, dos agricultores, dos movimentos populares, sobretudo, das pequeninas Comunidades Eclesiais de Base, alimentam a nossa esperança.
O IV Congresso Nacional da Pastoral da Terra, que acontece a partir de hoje em Porto Velho (12-07/07), reúne agentes da CPT, trabalhadores (as) de todo o Brasil, povos indígenas, quilombolas, povos do campo, das águas e das florestas. Com o tema e lema “Faz Escuro, Mas Eu Canto – Memória, Rebeldia, e Esperança dos pobres da terra”, o Congresso quer celebrar os 40 anos da CPT, “alimentar a esperança, reinventar-se mais livre, restaurar-se com a mesma mística dos princípios, com a rebeldia dos mártires e santos e seus sangues de memória e esperança; com a mesma radicalidade evangélica e a mesma utopia na fronte, espigas de esperança” (Oração do Congresso).
Cristo continua apontando o caminho para a Amazônia, para este chão no qual ecoam os gritos da terra e os “gritos silenciosos, abafados, mas profundos e doloridos, do próprio povo”. Hoje a situação dos homens e mulheres do campo não é melhor do que naquele tempo. Vive-se um período em que poucas luzes se descortinam no horizonte. Mas, a determinação e a garra permanecem. Nesta hora, vale o apelo de Dom Pedro Casaldáliga: “devemos abrir os olhos, abrir o coração e assumir a hora”.
“Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança”, disse o papa em seu discurso aos participantes do II Encontro dos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra (09/07). A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo; também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a terra.
Acredito que “todas as autênticas transformações se forjam no coração das pessoas e se irradiam em todas as dimensões de sua existência e convivência. Não há novas estruturas se não há homens novos e mulheres novas que mobilizem e façam convergir nos povos ideais e poderosas energias morais e religiosas (DAp 538). Acredito ainda que o Congresso Nacional da CPT caracterize um ponto concreto de convergência nacional, para que nasça uma nova consciência de cidadania em favor da uma nova Amazônia.
A CPT surgiu em 1975, fruto da indignação de pessoas ligadas à igreja, diante da violação dos direitos de povos indígenas e de comunidades de posseiros que tinham seus territórios invadidos por grandes empresas que se estabeleciam na Amazônia, com o apoio e estímulo dos governos militares, que concediam a elas fartos incentivos fiscais para ali se estabelecerem. E se estabeleciam com a exploração do trabalho de milhares de trabalhadores de outras regiões, que foram submetidos a condições semelhantes à de escravos.
A decisão de realizar Congressos foi tomada na assembleia geral da CPT em 1999, no bojo de um processo de avaliação da Pastoral. Nesta oportunidade estabeleceu-se que os Congressos deveriam definir os grandes eixos da ação da CPT e que a maior parte dos participantes deveria ser de trabalhadores. Os congressos se tornaram o espaço privilegiado para a CPT ouvir os trabalhadores, suas angústias, a pressão que sofrem e também suas conquistas. Ouvir deles também o que pensam da própria CPT, o que dela esperam. Já se realizaram três Congressos. O 1º foi em Bom Jesus da Lapa, Bahia (2001). O 2º foi na Cidade de Goiás (2005) e o 3º, em Montes Claros, Minas Gerais (2010).
Foram os conflitos na Amazônia que levaram a Igreja a constituir uma comissão para interligar, assessorar e dinamizar os trabalhos que diversas dioceses faziam para apoiar os trabalhadores do campo que sofriam violências e tinham seus direitos desrespeitados.
Por que Rondônia? Responde a CPT nacional: por ser fruto da colonização promovida pela ditadura militar e pela política neoliberal de mercado. Está situada numa das vias de penetração e encruzilhada da Amazônia. Para Rondônia migraram milhares de famílias brasileiras em busca de novas oportunidades de vida: terra, emprego e negócios. Porém, a ocupação desordenada e caótica teve como resultado a devastação ambiental e o acuamento das comunidades tradicionais. Quilombolas, ribeirinhos e indígenas ainda continuam com boa parte dos seus territórios tradicionais violentados, sem serem reconhecidos e demarcados. Rondônia tem uma das mais altas taxas de deflorestação da Amazônia, estimada entre 30 e 35%. Boa parte destas áreas, desmatadas em poucas décadas, hoje são pastos já degradados, tendo como consequência a destruição de igarapés e nascentes e o assoreamento dos rios.
Esta ocupação foi acompanhada também de uma injusta distribuição de terras agrícolas. O latifúndio ocupa um terço das áreas de produção agrícola, com ocorrências de trabalho escravo, retirada ilegal de madeira e grilagem de terras. O que tem gerado um permanente conflito fundiário. Por isso violência e repressão continuam de forma acentuada até hoje. Para os pequenos agricultores as dificuldades de acesso à educação, saúde, transporte e de sobrevivência no campo tem provocado grande êxodo rural, especialmente da juventude, em direção às cidades, ao exterior ou a novas fronteiras agrícolas do estado de Amazonas e Mato Grosso. Os ciclos de exploração natural da madeira, da pecuária e dos garimpos de ouro, cassiterita e diamantes, estão sendo rapidamente sucedidos pelos novos projetos de “desenvolvimento”. A construção das usinas hidrelétricas, obras emblemáticas do PAC governamental não deixa de mostrar novos impactos e opressão para os operários, ribeirinhos, assentados e populações urbanas. Enquanto isso avançam rapidamente as monoculturas de arroz, soja, milho e eucalipto, impulsionadas pelas hidrovias e vias de escoamento da produção de grãos destinados à exportação.
Neste contexto, o Congresso quer dar ênfase às comunidades tradicionais, como os quilombolas e povos indígenas; à luta por reforma agrária, ao processo de unificação das luta das diversas organizações do campo e da cidade, às iniciativas de resistência camponesa e de esperança, à promoção tenaz e decidida da agroecologia, com sistemas de produção agrícola, sem uso de veneno e mais adequadas ao bioma amazônico e a um modelo eclesial ecumênico, comprometido com a realidade do povo e dos pobres da terra, formado pelas CEBs e comunidades evangélicas, que se dedicam a promover a vida humana e a vida natural em todo o esplendor da Criação, e o crescimento do Reino de Deus nesta região privilegiada da Amazônia.
A liturgia deste domingo ilumina nossa reflexão e nos conclama a professarmos a fé em Cristo que nos configura como comunidade profética. Que tipo de cristãos somos nós se não transformamos o mundo? Somosenviados para continuar a missão de Jesus, provocando mudança radical (conversão), desalienando as pessoas, restaurando a vida humana, conscientes de que a missão vai provocar choque com os que não querem transformações (Mc 6,7-13).
Ao revolucionar nossa vida, Deus tem uma mensagem revolucionária a nos confiar (Konings). Quem envia é Deus, nossa missão é dar testemunho junto ao seu povo (Am 7,12-15). Para Paulo Apostolo, Cristo vem ao nosso encontro, cumprindo com radicalidade a vontade do Pai (Ef 1,3-14) para que nos identifiquemos com Ele, em sua ilimitada capacidade de amar e de dar vida.
Vós, os mais humildes e explorados, pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Vós sois semeadores de mudança (Papa Francisco).