Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Dom Moacyr

Sinais de reconstrução do Estado!


 A releitura do Documento 91 da CNBB “Por uma reforma do Estado com participação democrática” permite-nos perceber, neste inicio de 2016, os sinais de reconstrução do Estado no “contexto de fragilização do Estado-Nação”, mediante a presença de “novos sujeitos sociais” (doc 91,19).

Estes “novos sujeitos exigem novas estruturas” e entre essas estruturas está o processo democrático. Querem e precisam fazer-se ouvir; não podem e não querem ser considerados e tratados como objetos; estão a questionar a atual forma de viver a democracia, com seus ritos e com seu arcabouço jurídico. Tal modelo de democracia não mais responde a seus anseios e necessidades como seres políticos (doc 91 n.32).

O documento ainda reforça que “a Democracia deve ser assumida por grupos aos quais até então havia sido negada”. Para que este processo se torne efetivo é necessário o reconhecimento do caráter pluricultural da nação e o direito à identidade cultural, individual e coletiva; da igual dignidade das culturas, rompendo com a supremacia institucional da cultura ocidental; do caráter do sujeito político dos povos de comunidades indígenas, rurais, ribeirinhas e quilombolas, superando o tratamento tutelar destes povos como objetos de políticas ditadas por terceiros; o reconhecimento das diversas formas de participação, consulta e representação direta de povos indígenas, camponeses e afrodescendentes (n.36).

Também a liturgia deste domingo é um convite à leitura dos “sinais” porque são gestos que apontam em direção a algo mais profundo do que podem ver os nossos olhos (Jo 2,1-11).

As bodas de Caná da Galileia é o começo de todos os sinais. O protótipo dos que Jesus irá realizando ao longo da sua vida; um resumo daquilo que vai acontecer através de toda a sua atividade: com sua palavra e ação, Jesus transforma as relações dos homens com Deus e dos homens entre si (BP). Na “transformação da água em vinho” nos é proposta a chave para captar o tipo de transformação salvadora que opera Jesus e que, em seu nome, devem oferecer seus seguidores (Pagola). “Este fez Jesus como início dos sinais. E manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele”.

Todo o evangelho de João repete que em Jesus enxergamos o rosto do Pai, especialmente, na “hora” de sua “glória”. A hora que em Caná ainda não tinha chegado, mas para a qual esta narrativa nos orienta, mostrará a face de Deus em extremado amor para conosco (Konings).

O profeta Isaias fala do amor de Deus pelo seu Povo: trata-se de um amor inquebrantável, gera vida nova, alegria, festa, felicidade em todos aqueles que são atingidos por ele (Is 62,1-5). Gera, sobretudo, transformação radical, novo destino, novo nome (VP).

O apostolo Paulo fala da força da comunidade e aqui reafirmamos a força transformadora das CEBs. Ensina que dons, ministérios e atividades devem ser pensados como plurais; o que vale é a unidade do corpo que resulta do exercício da pluralidade (1Cor 12,4-11). O sentido e a razão de existir dons, ministérios e atividades estão relacionados à forma pela qual tudo chega como serviço às pessoas e devem servir à comunidade. Tudo o que somos e temos pertence à comunidade. Deus jamais concede algo para favorecer o império do individualismo. Na verdade, Deus pensa de forma comunitária e relacional.

A Palavra de Deus, através do evangelista, mostra desde o início da vida pública de Jesus o essencial que Ele veio nos revelar. Um Cristo que se deixa tocar e comover pelo sofrimento dos outros; que se apresenta como um Deus sensível e próximo.

Se olharmos ao nosso redor, nosso Brasil, nosso mundo podemos perguntar-nos quais são as necessidades que neste momento Maria está sinalizando: Eles não têm mais vinho; eles não têm casa; eles perderam tudo; eles estão com fome. Maria confia no seu Filho; ela simboliza todos aqueles que, em Israel, esperam a realização das promessas messiânicas. Representa aqueles que, conscientes da realidade aguardam algo novo.

Para comunicar a força transformadora de Jesus não bastam as palavras, são necessários os gestos. Evangelizar não é só falar, pregar ou ensinar; menos ainda julgar, ameaçar ou condenar. É necessário atualizar, com fidelidade criativa, os sinais que Jesus fazia para introduzir a alegria de Deus tornando mais feliz a vida dura de nossa gente.

No 1º encontro deste ano com o corpo diplomático do Vaticano (11/01), o papa Francisco, após saudar os embaixadores residentes em Roma, destacou que “um espírito individualista é terreno fértil para medrar aquele sentido de indiferença para com o próximo, que leva a tratá-lo como mero objeto de comércio, que impele a ignorar a humanidade dos outros e acaba por tornar as pessoas medrosas e cínicas”.

Porventura não são estes os sentimentos que muitas vezes nos assaltam à vista dos pobres, dos marginalizados, dos últimos da sociedade? E são tantos os últimos na nossa sociedade!

Sinalizando os migrantes, com o peso de dificuldades e tribulações que enfrentam diariamente à procura, por vezes desesperada, dum lugar onde viver em paz e com dignidade, o papa refletiu sobre a grave emergência migratória dizendo que devemos discernir as suas causas, perspectivar soluções, vencer o medo que inevitavelmente acompanha um fenômeno assim impressionante.

Toda a Bíblia nos conta a história duma humanidade a caminho, pois é conatural ao homem estar em movimento. A sua história é feita de muitas migrações, às vezes amadurecidas como consciência do direito a uma livre escolha, mas frequentemente ditadas por circunstâncias externas. Do desterro do paraíso até Abraão em marcha para a terra prometida, da história do Êxodo até à deportação para Babilônia, a Sagrada Escritura narra incômodos e sofrimentos, desejos e esperanças, que são comuns aos de centenas de milhares de pessoas em marcha nos nossos dias, com a mesma determinação de Moisés de alcançar uma terra onde corra leite e mel (Ex 3,17), onde possam viver livres e em paz.

Ouvimos hoje a voz dos milhares de pessoas que choram enquanto fogem de guerras horríveis, de perseguições e violações dos direitos humanos, da instabilidade política ou social, que frequentemente lhes tornam impossível a vida na própria pátria. É o grito de quantos se veem constrangidos a fugir para evitar barbáries indescritíveis contra pessoas indefesas como crianças e deficientes, ou evitar o martírio por simples filiação religiosa.

É triste, porém, constatar que muitas vezes estes migrantes não se enquadram nos sistemas de proteção baseados nos acordos internacionais. Como é possível não ver, em tudo isto, o resultado daquela “cultura do descarte” que põe em perigo a pessoa humana, sacrificando homens e mulheres aos ídolos do lucro e do consumo? É grave habituar-se a estas situações de pobreza, aos dramas de tantas pessoas, fazendo com que se tornem normalidade. As pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ainda não servem (como os nascituros) ou já não servem (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis, considerando as inúmeras pessoas e famílias que padecem fome e subalimentação.

É preciso, conclui o papa, um compromisso comum que inverta decididamente a cultura do descarte e da violação da vida humana, para que ninguém se sinta negligenciado ou esquecido nem sejam sacrificadas mais vidas pela falta de recursos e, sobretudo, de vontade política.

E hoje, antes que seja tarde demais, muito se pode fazer para impedir as tragédias e construir a paz. As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo, mais do que o têm sido até agora, e as respostas só poderão ser fruto dum trabalho comum, que respeite a dignidade humana e os direitos das pessoas.

O acolhimento pode ser ocasião propícia para uma nova compreensão e abertura de horizonte, tanto para quem é acolhido, que tem o dever de respeitar os valores, as tradições e as leis da comunidade que o acolhe, como para esta última chamada a valorizar aquilo que cada imigrante pode oferecer para benefício de toda a comunidade. Possa a fria indiferença de tantos corações ser vencida pelo calor da misericórdia, dom precioso de Deus, que transforma o temor em amor e nos torna artesãos de paz.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Pentecostes: Comunidades de rosto humano!

Pentecostes: Comunidades de rosto humano!

Palavra de Dom Moacyr Grechi – Arcebispo Emérito de Porto Velho

Páscoa do povo brasileiro - Por Dom Moacyr Grechi

Páscoa do povo brasileiro - Por Dom Moacyr Grechi

Hoje reafirmamos a nossa fé na ressurreição de Cristo; somos uma Igreja Pascal. Na oração do Credo, proclamamos a ressurreição dos mortos e a vida ete

Verdade libertadora! Por Dom Moacyr Grechi

Verdade libertadora! Por Dom Moacyr Grechi

  A Igreja, convocada a fortalecer o povo de Deus na atual conjuntura, é chamada a estar ao lado daqueles “que perderam a esperança e a confiança no B

Lugar seguro para viver! - Por Dom Moacyr Grechi

Lugar seguro para viver! - Por Dom Moacyr Grechi

  Diante do aumento da violência agrária que atinge trabalhadores rurais, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores artesanais, defensores de di

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)