Nosso retiro quaresmal avança rumo à Pascoa. Nesta caminhada de conversão e reconciliação, entramos na quarta semana da Quaresma, dedicando maior tempo à espiritualidade e à escuta da palavra de Deus. Meditando a solidão de Cristo na cruz: “Deus meu, por que me abandonaste?”, vamos nos libertando e transformando a nossa vida através do perdão e da prática da solidariedade.
Este domingo denominado “da alegria” (Laetare) significa deixar para trás o desânimo para receber o amor misericordioso que o Senhor nos oferece. “Alegra-te, Jerusalém, porque tua salvação superará tua tristeza”, assim iniciamos hoje a liturgia buscando forças para continuar nossa caminhada.
Alegria que nasce da experiência de sentir-se amado de modo novo por Deus, de ser perdoado, da paz de sentir-se bem dentro, tocado no coração por um amor que cura, que vem de cima e nos transforma (B.Forte).
Experimentamos, como o cego de nascença (Jo 9,1-41), a escuridão pessoal e a escuridão do mundo que nos envolve para entender melhor a luz de Cristo.
Escuridão, no entendimento de S. Inácio de Loyola, é “sentir-se desalentado e triste”. João Paulo II, ao ampliar a imagem da noite escura de João da Cruz, inclui os sofrimentos do mundo moderno e ajuda-nos a entender o sofrimento de nosso povo diante da tragédia da inundação de nossos rios:
Nossa época conheceu tempos de sofrimento que nos tem feito compreender melhor esta expressão e dar-lhe um certo caráter coletivo. Nossa época fala do silêncio ou da ausência de Deus. Conheceu tantas calamidades, tantos sofrimentos infligidos pelas guerras e por matanças de tantos seres inocentes. Usamos agora o termo noite escura para todos os aspectos da vida e não somente par uma fase da viagem espiritual. Recorremos à doutrina do santo como resposta a este mistério do sofrimento humano. Faço referência específica ao mundo do sofrimento. Sofrimento físico, moral, espiritual, como as doenças, como as pragas da fome, a guerra, a injustiça, a solidão, a falta de sentido da vida, a fragilidade da existência humana, o doloroso conhecimento do pecado, a aparente ausência de Deus; são para o crente experiências purificadoras, às quais se podem chamar noite da fé.
A esta existência São João da Cruz deu o nome simbólico e evocador de noite escura e se refere explicitamente à inquietante obscuridade do mistério da fé. Ele não tenta dar resposta ao terrível problema do sofrimento na ordem especulativa; mas à luz das Escrituras e da experiência descobre algo da maravilhosa transformação que Deus efetua na escuridão, posto que, “de modo tão sábio e formoso sabe ele tirar dos males bens” (Cant.B 23,5). Finalmente, nos dispomos a viver o mistério da morte e a ressurreição de Jesus em toda sua verdade.
Somos cegos quando não conseguimos enxergar a necessidade do próximo. No Evangelho de hoje, Jesus solidariza-se com as pessoas necessitadas e oferece-lhes vida saudável e íntegra: cura a cegueira, liberta o ser humano de toda espécie de opressão e ilumina o caminho dos que se encontram desorientados. Com nossos olhos ungidos e abertos, livres de nossa cegueira original, renovamos nosso empenho de viver como filhos e filhas da luz, vencendo, particularmente, a cegueira que nos impede de reconhecê-lo nos irmãos, sobretudo nos mais pobres, discriminados e excluídos, tanto pela sociedade como pela Igreja (VP).
O sentido profundo disso tudo é que o batizado deve ser uma testemunha da luz que recebeu. O cego de nascença nos dá o exemplo: ele testemunha o Cristo, com convicção e firmeza sempre crescentes. O batizado é um homem da luz, alguém que enxerga com clareza, e que anda na luz. Pois a luz não é só para ser contemplada, mas para caminharmos nela, realizando as obras que ela nos permite enxergar e levar a termo (J.Konings). “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor… Desperta, tu que estás dormindo, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará”(Ef 5,8-14).
Viver na Luz significa que Deus conta conosco para levar adiante o seu plano de amor e justiça no mundo. Deus quis contar com Davi para que assumisse a missão de servir ao povo como um governante justo (1Sm 16,1b.6-7.10-13a). Ele é a figura do governante “segundo o coração de Deus”, rei que segue a justiça e não despreza os pobres.
O mistério pascal de Cristo é um mistério de libertação, que exorta continuamente a assumir a liberdade como tarefa. “Hoje, mais do que nunca, a Palavra de Deus não poderá ser anunciada e ouvida senão na medida em que ela for acompanhada do testemunho do poder do Espírito Santo, que opera na ação dos cristãos ao serviço dos seus irmãos, justamente nos pontos onde se joga a sua existência e o seu futuro” (AO 51).
Neste tempo da quaresma, estamos realizando a Campanha da Fraternidade, cujo tema nos faz compreenderque pessoalmente e comunitariamente Deus nos liberta (Gl 5,1). É no âmbito dessa liberdade que todos somos chamados a viver o encontro com Deus e, animados por sua presença sermos testemunhas de que o Reino de Deus já está entre nós.
A missão da Igreja na erradicação do tráfico humano fundamenta-se na missão e na pessoa de Jesus. Colocar-se a serviço da vida, assim entende a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil. “A Igreja recebeu de Jesus a missão de cuidar do ser humano. Ao se fazer ser humano, Jesus revela o valor sagrado da pessoa. Tal missão pertence ao mais profundo de sua consciência evangélica”(CNBB/Doc.40, 203-204). É parte da identidade da Igreja contribuir “com a dignificação de todos os seres humanos, juntamente com demais pessoas e instituições que trabalham pela mesma causa” (DAp398).
A Igreja entende que contribuir na erradicação do tráfico de seres humanos é assumir a “causa de Deus”. É combater o bom combate (2Tm 4,7). O mundo deve ver a Igreja como baluarte da liberdade, abrigo dos oprimidos. A Igreja é um lugar onde a liberdade inaugurada em Cristo é oferecida ao mundo. Por isso todo cristão tem a missão de libertar-se e de libertar.
Enquanto cristãos e pessoas de boa vontade temos a missão de agir para que a sociedade se estruture em termos de conscientização e prevenção; denúncia; reinserção social e incidência política como eixos integrantes do processo de enfrentamento ao trafico humano.
A organização para o enfrentamento do tráfico humano segue o princípio de que é necessário articular a ação social cumprindo o desafio da Igreja ser a advogada da justiça e a defensora dos pobres (DAp 395). É uma tarefa urgente, pois velados pelos discursos da necessidade de acelerar o desenvolvimento econômico e a bolha ilusória da inserção social via consumismo, que para liberar o mercado e o capital prende as pessoas, estão milhares de pessoas em situação de miséria e pobreza, potenciais vítimas de aliciadores para o trafico humano.
A conscientização sobre a realidade do tráfico humano sugere as pessoas traficadas a não acomodação, o grito e a ação consequente por inclusão cidadã. Cabe a Igreja gritar junto ou emprestar a sua voz. Num segundo momento implicará também em denunciar. A denúncia deve ecoar na sociedade em suas diferentes organizações na perspectiva de se construir iniciativas que dificultem a predominância das condições que propiciam a prática do tráfico humano: miséria, ganância e impunidade.
A repercussão da questão do tráfico humano na sociedade tem gerado diferentes níveis de mobilização. Nas várias unidades da federação, parcerias entre governo e entidades da sociedade civil têm se mobilizado para formar comitês ou redes de articulação, tal como acontece em diversos Estados. Em torno ao combate ao tráfico humano, existe também um histórico de mobilização das pastorais da Igreja, atuando em diferentes vertentes(TB/CF 406-437).
Enquanto cristãos somos desafiados a nos comprometer com o processo de erradicação do tráfico de pessoas em suas várias expressões, seja no trabalho escravo, no comércio de órgãos, na exploração sexual ou outras formas de escravização do ser humano, porque isso nos agride como uma gravíssima violação dos direitos humanos. Mas também em função de nossa convicção de fé e nossa opção de vida na fé.