Com a finalidade de recuperar o caráter de luz que é específico da fé, capaz de iluminar toda a existência humana, foi publicada a encíclica “Lumen Fidei” (A Luz da Fé), cujo lançamento aconteceu no dia 05 de julho, na Sala de Imprensa do Vaticano. Esta é a primeira encíclica do pontificado de Papa Francisco e a última de Bento XVI, que completa a sua série de três encíclicas sobre as virtudes cardeais: fé, esperança e caridade.
Quem acredita nunca está sozinho, porque a fé é um bem comum que ajuda a edificar as nossas sociedades, dando esperança. É este é o coração da “Lumen Fidei”. Numa época como a nossa, escreve o Papa, em que o acreditar se opõe ao pesquisar e a fé é vista como um salto no vazio que impede a liberdade do homem é importante ter fé e confiar, com humildade e coragem, ao amor misericordioso de Deus, que endireita as distorções da nossa história.
Bento XVI escreveu o documento durante os meses de julho e agosto de 2012, demonstrando que sua renúncia não tinha sido ainda decidida. O Papa Francisco aproveitou o plano da encíclica sobre a Fé e deu continuidade, concluindo-a: “agradeço-lhe de coração por isto e, na fraternidade de Cristo, assumo seu precioso trabalho, acrescentando ao texto algumas contribuições”. Esse gesto do papa Francisco é de grande significado, pois demonstra um sinal da fraternidade entre o bispo de Roma emérito e o atual.
Durante a apresentação do documento, lançado no Ano da Fé, o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, disse que a encíclica explica em linguagem acessível o que é a fé: “A fé não é uma luz que dissolve todas as nossas trevas, mas a lâmpada que guia os nossos passos na noite, e o que nos basta para o caminho” (LF 57).
Para ele, o documento tem muito de Bento XVI e tudo do papa Francisco. “É uma encíclica que apresenta de verdade a fé cristã como luz proveniente da escuta da palavra de Deus na história. É o pilar que faltava à trilogia de Bento XVI sobre as virtudes teologais; a providência quis que a coluna faltante fosse um presente do papa emérito ao seu sucessor e, ao mesmo tempo, um símbolo de unidade”, afirmou o cardeal.
“Lumen Fidei” é um aprofundamento da fé que percorre o caminho da história da salvação; essa fé, que continua sendo um dom de Deus e nasce da escuta (Rm 10,17), no ser humano se faz exercício e se conjuga de modo fecundo com a inteligência e a razão humanas, com o próprio coração do ser humano, e é a verdadeira luz para o conhecimento de Deus e de Jesus Cristo (Jo 14,6).
A encíclica possui um texto breve em comparação aos demais documentos papais e consta de quatro capítulos. É uma reafirmação de questões essenciais da fé católica: trata da unidade da fé, a salvação, os direitos e deveres da teologia e a primazia da Igreja como antídoto ao relativismo da cultura atual. ”O fiel afirma que o centro do ser, o coração mais profundo de todas as coisas é a comunhão divina. O Deus-comunhão é capaz de abraçar a história do homem e introduzi-lo no seu dinamismo de comunhão” (LF 45).
No 1ºcapítulo, o texto repassa a história da fé, desde Abraão até nossos dias, e alguns dos debates que ao longo dos séculos questionaram a missão da Igreja, como a salvação pela fé ou sua eclesialidade. O 2ºcapítulo é dedicado às relações da fé com a verdade, o amor, o diálogo com a ciência e a sociedade, a busca de Deus e a teologia. O 3º capítulo baseia-se na legitimidade da instituição eclesial como base da unidade da fé, assim como a importância dos sacramentos e a sucessão apostólica como depositários da verdade dos crentes. A unidade da fé diante das diferentes ideologias é uma das bases do documento. O 4º capítulo vincula a fé com a esperança e a caridade, e analisa as relações desta virtude com a família, a sociedade, o bem comum e a ordem política. Na conclusão, uma invocação do papa Francisco à Virgem Maria.
Na introdução, Francisco apresenta o objetivo da encíclica: responder à velha objeção de que “a fé já não serve para os tempos atuais, para o homem adulto, que se jacta de sua razão, ávido por explorar o futuro de uma nova forma”.
A encíclica “Lumen Fidei” demonstra que a fé é e continua sendo “uma grande luz, de uma grande verdade” e “com capacidade para iluminar toda a existência humana”. Ela propõe uma fé baseada no amor, “que transforma a pessoa por completo”. Uma fé fundamentada na razão e, portanto, “nada arrogante nem intransigente, mas humilde” e sempre em busca. Uma fé que é transmitida na memória eclesial, através do “sujeito único da memória que é a Igreja”. De geração em geração. “O rosto de Jesus chega até nós através de uma cadeia ininterrupta de testemunhas”.
No último capítulo: “Deus prepara para eles uma cidade” (Heb11,16), a fé beneficia “a cidade dos homens”, colocando-se “a serviço da concretização da justiça, do direito e da paz”, convertendo-se “em um bem para todos, em um bem comum”. Nesta parte encontramos o tema: “Uma luz para a vida em sociedade” (LF 54-57) que nos ajuda a aprofundar a nossa fé na conjuntura atual:
Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão.
Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada; ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na utilidade e no lucro, masconsiderem a criação como dom, de que todos somos devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo que a autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum.
A fé afirma também a possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira, paciência e empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre mais originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a nossa vida é mais profunda do que todas as nossas negações.
Se tirarmos a fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre nós, apenas o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. A fé ilumina a vida social: possui uma luz criadora para cada momento novo da história, porque coloca todos os acontecimentos em relação com a origem e o destino de tudo no Pai que nos ama.
O cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se ato de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de crescimento na fé e no amor. A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; o sofrimento recorda-nos que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de esperança que nos faz olhar em frente, sabendo que só a partir de Deus, do futuro que vem de Jesus ressuscitado, é que a nossa sociedade pode encontrar alicerces sólidos e duradouros.
Unida à fé e à caridade, a esperança projeta-nos para um futuro certo, não deixemos que nos roubem a esperança, nem permitamos que esta seja anulada por soluções e propostas imediatas que nos bloqueiam no caminho, que fragmentam o tempo transformando-o em espaço. O tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo que o tempo projeta para o futuro e impele a caminhar na esperança.
A Maria, Mãe da Igreja e Mãe da nossa fé, nos dirigimos, rezando-Lhe: Ajudai, ó Mãe, a nossa fé. Recordai-nos que quem crê nunca está sozinho. Ensinai-nos a ver com os olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé cresça sempre em nós até chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor.