Sábado, 3 de agosto de 2013 - 05h02
Felipe Azzi
A composição saía da Estação de Porto Velho com destino a Guajará-Mirim, ponto final do trajeto. A gare de Porto Velho imperava em imenso pátio, com armazéns, depósitos, oficinas de manutenção, além de vários desvios de linhas férreas, espaço de manobra das máquinas para engate e desengate de vagões. O vai-e-vem de pessoas, umas para embarcar, outras para um “adeus” ou “até breve”, misturava-se ao apressado de carregadores conduzindo cargas para despacho de última hora. Esse espaço da Amazônia vivia, por momentos, o estilo europeu de viajar. Durante as próximas trinta e seis horas, a vida seria tocada sobre trilhos embalando planos de vida ou recomeço de sonhos.
A “Maria-Fumaça”, com seus componentes, passava soltando fumaça e chamusgando de pó as localidades de seu percurso, dentre elas: Jaci-Paraná; Mutum-Paraná; Abunã; Vila Murtinho, para ao final chegar a Guajará-Mirim, atendendo, eficazmente, com transporte de pessoas, cargas e produtos da terra, às necessidades da região.
O transitar do trem, na visão ingênua dos indígenas locais – meio assustados, meio curiosos – era o passar de uma cobra grande de ferro puxando os seus filhotes sobre um caminho riscado no chão. O sertanista Pedro Azzi[1]dizia que os índios nativos da região falavam de uma “cobra grande de ferro” que varava a mata cuspindo fumaça pelo cangote.
Nos primórdios da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, ao longo do caminho férreo, era comum a presença de índios, embora não fossem vistos, assustando a passagem da cobra de ferro. Não acreditavam no que viam e buscavam entender por que ela bebia água e soltava fumaça pelo dorso.
O almoço era em Jaci-Paraná, onde serviam suculenta e deliciosa galinha ao molho pardo, que se tornou típica dessa parada. Aí, também, a locomotiva se abastecia da água indispensável para a geração do vapor-força. Elemento base para a sua locomoção.
Outra parada muito interessante era Jirau, onde os passageiros podiam saborear frutas regionais fresquinhas e comprar cupuaçus, cocos, abacaxis, banana pacova e cajus, tudo de colheita diária do lugar.
Passadas algumas localidades de atendimento rápido, o trem, resfolegando, deixava o curso sinuoso de então, ficando para trás curvas perigosas, e entreva em percurso direto chamado “RETA DO ABUNÔ. Nesse ponto a sonolência chegava avisando que era hora da “sesta”. Alguns dormitavam, outros continuavam a jogar conversa ao vento.
Lá fora, a paisagem verde passava veloz, pincelada de tons amarelos, vermelhos e seus matizes multicoloridos. Eram flores silvestres e borboletas que tal qual recepcionistas faceiras dançando, mostravam que a paz da selva não era molestada pelo “CAFÉ-COM-PÃO-BOLACHA-NA-MÃO” acelerado da máquina mestra, e muito menos com o silvo encantador de seu apito. Houve poeta sonhador que afirmou ter surgido um romance de “bem-querer” entre a “Maria Fumaça” e a mata amazônica.
O jantar em Abunã era acompanhado de pequeno “show artístico”. Pessoas dançavam ou se deleitavam com melodias tão em voga naquele tempo, como: “Adios muchachos, compañeros de mi vida...”; “Luna que se quede sobre las tiniebras de mi soledad...”, ou “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...”. Antes que a noite avançasse muito, as pessoas se recolhiam aos seus aposentos, porém, a maioria se instalava com redes armadas nas vastas varandas do hotel. A noite silenciosa prometia sono repousante.
Após o café da manhã, a composição, pronta para recomeçar a viagem, sentia o forte pulsar da máquina liberando jatos-pressão de vapor, como que indócil para pegar a estrada. Partia, então, em demanda a Vila Murtinho. Adiante, Penha Colorado, Taquara, Araras, Periquitos, Chocolatal, Ribeirão e Misericórdia, localidades marginais, tinham o seu atendimento. Embarcavam castanha, madeira, milho, feijão, farinha e mel de abelhas, de sua produção ou de extrativismo natural, em busca de mercado e de melhor preço.
Na estação de Vila Murtinho, uma das melhores da estrada, a demora era um pouco maior. Aí algumas pessoas faziam pequeno lanche. Vila Murtinho era charmosa pelo casario que ostentava. Tinha até uma igrejinha de contornos cativantes.
O charme de Vila Murtinho ficava para trás. A partir daí, algo especial sucedia na viagem. A composição assumia jeito meio fagueiro. Os corações aceleravam as batidas querendo acompanhar o ritmo da máquina. A respiração denunciava iminente emoção. Os ares de Guajará se manifestavam no olhar de cada passageiro. Logo surgiria a curva da praia do Valentim. Nesse momento, o apito da máquina ecoava nos baixios das cachoeiras da redondeza, anunciando a chegada do trem. A vegetação paralela se curvava em respeitosa vênia à majestade da “Maria-Fumaça”, da “Cobra Grande de Ferro” brasileira, ou do “Cavalo de Ferro” do oeste norte-americano que, passante, oferecia ao ar toda a sua graça com muita elegância.
A chegada a Guajará-Mirim era muito festiva. A bem dizer, o povo da cidade acorria à estação em busca de novidades, pois todos, de algum modo, dependiam de pessoas ou coisas que o trem trazia.
Carregadores braçais se ofereciam para levar bagagens ou cargas pequenas, enquanto que carros movidos à tração animal cuidavam de transportar cargas de maior volume e peso.
Parentes, conhecidos e amigos se abraçavam num encontro saudoso e falavam de suas notícias e novidades, a um só tempo, na ânsia de colocar em dia a sucessão de fatos de suas vidas. Eram estudantes que voltavam para casa em férias de seus estudos em Belém, Manaus ou Porto Velho. Eram viajantes de representação comercial que chegavam para cobrir a praça com pedidos de suas mercadorias. Enfim, pessoas que vinham para ficar ou em visita ocasional a parentes radicados na “Pérola do Mamoré”.
Também passageiros de nacionalidade boliviana eram recebidos por familiares, cujo transporte fluvial já tinham providenciado para “La Banda”, onde na verdade sua viagem terminaria.
A gare de Guajará não tinha a expressão grandiosa da gare de Porto Velho. Mas era altaneira e dela se descortinava a vazão, serena e silenciosa, do “Mamoré” rumo às borbulhantes cachoeiras que deram o nome a nossa “Pérola”. O espaço de manobra de máquinas e vagões era restrito a um traçado triangular de trilhos, que deu origem ao atual bairro do Triângulo. Tinha vasto armazém e depósito de cargas, um galpão para manutenção, além de caixa d’água padrão das ferrovias. Em seu pátio, relativamente amplo, ficavam armazenados em espaço aberto milhares de toneladas de matéria prima gumífera, em unidades longo-arredondadas chamadas “PÉLAS”, produto oriundo de seringais nativos, aguardando embarque para Porto Velho, onde seriam beneficiadas e convertidas na borracha que abastecia o mercado industrial de São Paulo. Essa era uma das fortes razões econômicas da viagem da “Cobra Grande de Ferro”. Puxando pela memória, é impossível não sentir saudade.
A “Maria-Fumaça” fez esse percurso durante muitos e muitos anos. Servindo, transportando, promovendo a ocupação populacional e desenvolvendo uma parte da região amazônica que ainda hoje é esquecida. Indo e vindo, num vai-e-vem constante, sem se cansar. No entanto, uma infeliz canetada decretou a sua morte. Não por velhice, apesar de já sexagenária, mas como medida profilática contra a doença de suas atividades deficitárias. O Visconde de Mauá[2], no seu descanso eterno, certamente sentiu o golpe. Os anos posteriores mostrariam que houve precipitação na medida inusitada.
Ainda hoje, pessoas que são chamadas de saudosistas não entendem como um patrimônio econômico, de proporções tão imensas, foi destinado ao ferro velho, ao abandono e ao descaso.
A saudade, alimentada por recordações felizes, mantém viva na memória de todos os que trabalharam, conheceram e viajaram pela ESTRADA DE FERRO MADEIRA-MAMORÉ, a ferrovia de heróis.
[1]Pedro Assad Azzi (1930-1984) era natural de Limoeiro do São Miguel, no Alto Guaporé. Trabalhou para a FUNAI na pacificação dos “PACAÀS-NOVOS” e dos “URUÊ-AUAU”, tribos indígenas da região de Guajará-Mirim.
[2]Irineu Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá. Homem de visão que viveu no séc. XIX, inaugurou, em 1854, a primeira estrada de ferro do Brasil. Grande empreendedor, foi apaixonado pela globalização da economia (Dicionário do Brasil, Melhoramentos, 4ª ed., 1976).
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