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Luka Ribeiro

A ESPERANÇA QUE NÃO DECEPCIONA


                     
                      Felipe Azzi

 

                Gosto de ler. Sempre gostei. Em meus anos de vida, que não são poucos, praticamente li tudo o que esteve ao meu alcance. Penso que o interesse pela leitura demonstra o estágio cultural de um povo. O hábito de ler estimula o turismo imaginativo: na medida em que imaginamos todo o cenário descrito no texto, sem perceber, entramos na estória e passamos a viver o que nos é contado, com todas as particularidades, situações geográficas, cores, sentimentos alegres ou doloridos, percebendo até mesmo a fragrância de perfumes.

                Recentemente, li “25 minutos – A vida de Chiara Luce Badano”, de autoria de Franz Coriasco, que me levou em pensamento à Itália, mais precisamente a um pequeno povoado dos altos da Ligúria, chamado Sassello. Poucas vezes tive a oportunidade de ler uma história de santidade refletida nos atos mais simples da existência humana.

                Chiaretta, para nós Clarinha, como o autor a chama, nasceu de gravidez tardia de Teresa, sua mãe, mas muito desejada pelos pais, principalmente por Ruggero, um pai extremamente sentimental. Filha única que demorou a chegar, por isso mesmo talvez tenha merecido a missão que lhe foi dada e que cumpriu com atroz sofrimento, mas com a alegria que contagia os puros: VIVER NO AMOR DE JESUS CRISTO.

                Teve infância, adolescência e juventude normais como qualquer moça de nossa época. Sonhou casar, ter filhos. Fez projetos de vida. Conheceu pessoas interessantes, inclusive sua mãe espiritual na terra, Chiara Lubich, fundadora do movimento “Focolares”, do qual se tornou “gen”, membro engajado e atuante.

                No esplendor da juventude, quando os sonhos estão muito perto da realidade, um câncer, dos mais violentos e implacáveis, ceifou a vida de Clarinha, a Chiaretta de Teresa e Ruggero, arrancando de seus braços a filhinha querida, deixando-lhes a esperança de uma santa em suas vidas, ou mesmo, quem sabe, um anjo de luz, já que em vida Chiaretta foi chamada de Chiara Luce, que quer dizer CLARA LUZ ou, de uma forma convincente, “RADIANTE LUZ”.

                Clarinha, segundo depoimentos que constam de seu processo de beatificação, viveu mesmo a essência do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Viveu como uma pessoa comum, sem a radicalidade que costuma comprometer a vida de muitos, mas com a experiência pessoal da prática do amor na sua dimensão mais simples, na fraternidade, na entrega total à vontade de Deus e na aceitação sóbria e humilde dos desígnios que encaminharam os últimos dias de sua vida.

                Muito mais eu poderia falar sobre Clarinha, mas detenho-me numa questão importante, várias vezes mencionada no livro. Franz Coriasco se diz agnóstico, cético por natureza. Como sabemos, para o agnóstico, é difícil aceitar a santidade; mais difícil ainda é reconhecer a coerência dos desígnios de Deus, pois lhe falta a fé. Faltando a fé, a razão facilmente se torna escrava do acaso. Na lógica da razão sem a fé, tudo o que existe se justifica por si mesmo e se torna obra do acaso.

                Imagino que essa forma de pensar acaba por confundir a esperança, que é o recurso que usamos na expectativa do futuro. Acontece que geralmente apelamos para a esperança como solução exageradamente ansiada, colocando sobre ela toda a carga da realização de nossos projetos. Como resultado, a esperança não satisfeita se transforma em decepção. Adotamos uma postura obstinada em nossas vidas. O viver se torna uma busca frenética do impossível, em geral, alimentada por nossos desejos que, como sabemos, não são fáceis de saciar.

                Como seres humanos, somos um mistério. Mais misterioso ainda é todo o contexto em que vivemos. Não sabemos de onde viemos nem para onde vamos, costuma-se dizer. É frase lapidar e até histórica, mas frequentemente usada para a redução das responsabilidades existenciais.

                Quem professa o credo religioso cristão nutre uma esperança viva. Sabe, pelo testemunho de um Jovem Galileu que habitou entre nós pouco mais de trinta anos, de onde viemos e, por garantia d’Ele, sabe também para onde vamos. Para nós, católicos, toda criatura humana é portadora da esperança que não decepciona. Sabemos que fomos criados para viver a felicidade. Isso mesmo, Deus quer de nós apenas uma coisa: que sejamos felizes, pois o que mais poderia querer para os filhos um Criador que é Pai, senão a felicidade?

                Mas, o que seria e em que consistiria a felicidade?

                O senso comum costuma ver a felicidade como a conquista de bens materiais e a realização dos projetos de vida. Isso realmente é necessário para o crescimento natural da caminhada humana e inserção da própria pessoa no mundo que avança para o progresso. Mas temos exemplos na história que demonstram que o fato de ter – e ter muito – nem sempre conduziu à felicidade.

                Penso que a felicidade não seja simplesmente o TER, mas sim o SER. Se a felicidade fosse o fato de possuirmos algo, seríamos os seres mais desiludidos da terra. A posse é fundamentalmente efêmera e passageira. Nela tudo se esvai, menos o Amor, se conviver com ela. Refiro-me ao Amor de Deus, nosso Criador. Falo do amor que consiste em sair de si para o outro, praticando a solidariedade e a misericórdia, amando sem medida e, por assim amar, tudo fazer pensando no bem-estar e até mesmo na felicidade do próximo. À primeira vista, parece um modo de agir franciscano e reservado àqueles que, abdicando de seus bens materiais, se colocam a serviço dos pobres e excluídos. Na verdade, não é isso. Trata-se de uma atitude de respeito ao semelhante que cada um deve ter, usando os recursos de que dispõe, mas deixando espaço e oportunidades para que os outros também encontrem meios para a realização de seus projetos de vida, com liberdade e alternativas de escolha.

                Se quisermos viver a verdadeira vida, a vida da eternidade, a felicidade plena, temos que trabalhar o amor que se doa, não só em relação ao próximo, nosso irmão, mas também em relação a toda a criação, obra de Deus. Só assim estaremos em paz com nós mesmos e com toda a natureza criada. Devemos valorizar o fenômeno da alvorada de cada dia, a beleza das flores que enfeitam a nossa caminhada, as criancinhas que alegram a nossa vida com a inocência que provoca afagos; e respeitar até mesmo os animais domésticos que no dão a sua amizade sem esperar nada em troca. O amor de Deus é assim. Complexo para o entendimento humano, mas extremamente simples para a experiência do viver. Essa simplicidade é vital e robustece o espírito, dando forças ao corpo para suportar os reveses tão comuns, e até doloridos, da existência de cada um de nós. As pessoas santas sabem viver esse amor. Doam-se até as últimas consequências, suportando até mesmo doenças terminais e sofrimentos além de suas forças, sem jamais vacilar.

                Considero que o amor, essência de Deus, revelado por Jesus Cristo, seja atributo do ser humano. Todos nascemos com esse dom especial que deve ser cultivado com carinho para o bem de todas as coisas. Mas não é fácil viver e desenvolver esse amor. Somos seres frágeis e limitados, cheios de conflitos internos, uns até conhecidos de nós mesmos, mas que cuidamos de esconder. O remédio para esses males é o despojamento, o desprendimento nas atitudes, o desapego do supérfluo que, se não contido, outra coisa não faz senão congestionar a mente da pessoa e regar a horta onde floresce o egoísmo. Contudo, o homem sempre caminha na contramão da vontade de Deus e, por assim proceder, ao longo da história, vem promovendo a discórdia entre as pessoas, a ganância de poder e de acúmulo de bens, práticas de usurpação de coisas e direitos dos outros, guerras de conquista entre povos e nações.

                Para Deus não existe o ontem e o amanhã, o passado e o futuro. Deus é onisciente e onipotente. A visão de Deus é única e contempla, no hoje do Seu poder, a amplitude de tudo o que foi criado. Acho que Deus vê com tristeza o rumo que a vida no mundo está seguindo. As pessoas, manipulando os encantos da esperança, procuram a realização de seus projetos imediatistas, ignorando a perfeição do Seu Amor, que tudo suporta e tudo perdoa, para abraçar a influência perniciosa e dominadora do egoísmo, responsável por todos os conflitos. Acho mesmo que Deus deve chorar a perversão de Sua criação, como um pai lamenta a perdição de seus filhos.

                A perfeição outra coisa não é senão a santidade. E a santidade não está aberta apenas para os Santos que, pelo exemplo de vida, merecem o reconhecimento popular e são levados às honras dos altares. É questão colocada pelo próprio Cristo, quando afirma: “Portanto, sede perfeitos como vosso pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Então, a busca da perfeição (santidade) diz respeito a todos nós, sem exclusão alguma.

                A propósito da santidade, é oportuno recordar as palavras de Dom Pedro Carlos Cipolini, bispo diocesano de Amparo, Estado de São Paulo, nas reuniões pastorais, transmitindo reconfortador ensinamento, ao afirmar que o mundo está cheio de santos anônimos que vivem o peso do sofrimento nas mais variadas formas de dor, oferecendo o seu martírio a Jesus Cristo, fiéis à essência de Seu Evangelho. São reconhecidos santos pelas pessoas que lhes são próximas e que foram testemunhas de seu padecimento.

                Aceitar os desígnios de Deus não e acomodar-se e simplesmente entregar-se, como parece. Ao contrário, é manter a luta usando de todos os recursos de que dispomos, até o limite de nossas forças, buscando a solução de tudo o que nos aflige. Daí em diante, podemos deixar tudo por conta de Deus, que sabe o que é melhor para nós e nos concede, em tempo oportuno, tudo de que necessitamos. Por isso, as pessoas chamadas santas são especiais. Absorvem o seu sofrimento sem lamúrias, sem revoltas ou perguntas do tipo “Por que eu?” “Por que acontece comigo?”. Assumem a desdita que a vida lhes impõe como a própria cruz que, conscientemente, sabem que é somente sua, e procuram carregá-la até o fim com a dignidade inerente ao mártir. Oferecem, assim, o seu martírio espiritual e corporal para a purificação dos males que ofendem a Deus.

                Monsenhor Geraldo Azevedo, com quem convivi alguns anos, foi vítima de paralisia parcial irreversível de seus membros inferiores. Mesmo assim, cumpriu até os derradeiros dias de sua vida o paroquiato que lhe fora confiado. Lembro-me que, em suas homilias, costumava contar sobre uma visita que fizera a certo amigo paraplégico, a quem perguntou: “Amigo, como tem sido a sua vida?” A resposta foi surpreendente: “Monsenhor Geraldo, sou feliz e vou indo muito bem, carregando a minha cruz com muita dignidade!”. Essa atitude é que torna o santo – de altar ou de conhecimento próximo – um poderoso intercessor.

                O mundo nunca precisou tanto de santos como na era em que vivemos. Abandonou-se a Verdade, que tudo ilumina com a luz da paz, para se caminhar com a mentira, travestida de vã esperança, que é a semente de todos os enganos que conduzem à infelicidade.

                Essas reflexões sobre a vida de Clarinha revolveram momentos vividos em passado recente, que mudaram a rota de minha espiritualidade. Experimentei novamente a dor que sublima misteriosamente tudo o que está ao seu redor. O sofrimento de Teresa e Ruggero não me é estranho. Quando Ellen Maria, uma de nossas duas filhas, passou para a eternidade, nos sombrios dias de dor, acalentava-nos a alma justamente a esperança que não decepciona. Tenho anotado em pequeno caderno de memórias espirituais o que pensava naqueles dias: “Perdemos nossa filha Ellen e ganhamos um anjo no céu... Hoje (08 de junho de 2007) uma parte de nós foi para a eternidade. Foi tudo tão rápido. A surpresa da doença, num quadro tão violento, não nos permitiu a alegria da presença de Ellen mais tempo conosco. Os momentos, todos eles, eram doloridos. Orações de entrega à vontade de Deus, com pedidos de intercessão à Mãe de Jesus e a muitos outros Santos, nos deram forças para atravessar esse período de grande dor. Ellen teve o seu pequeno calvário. Dor e agonia da doença, decepção na vida matrimonial e quebra de todos os planos que ela tinha, pois era uma pessoa forte e decidida.”

                Lembro-me que, na sua Missa de Sétimo Dia, também celebrada nas dependências da Sanasa, empresa onde Ellen trabalhava, encomendada por seus colegas de serviço, o celebrante pediu o depoimento de quem quisesse dizer alguma coisa sobre a Ellen. Houve quem afirmasse que a sua Missa foi a primeira celebrada na empresa. Alguém disse que Ellen era uma “mulher de Deus”. Outros se referiram a ela como “um exemplo a ser seguido, pelo testemunho de vida na fé e pureza nas intenções”.

                Poucos dias depois, Robertinho, presidente da Sociedade Assistencial Esperança e Vida, nos trouxe a notícia de que a Sanasa finalmente doara o ambulatório para o seu Centro de Recuperação de Viciados Químicos, realizando antigo sonho de Robertinho, fato que ele generosamente atribuiu à intercessão de Ellen.

                Os Santos são preciosos para intercederem pelas necessidades dos aflitos, mas o que conta mesmo é o exemplo que deixam para a humanidade. A cada recorrente pedido que colocamos sob sua intercessão, é como se acrescentássemos mais um tijolinho na construção de nossa conversão, que nunca está completa.

                Tenho para mim que Deus também sonha. E acho que Seu sonho seja uma reunião final de toda a criação redimida nas pessoas de Seus Santos, transformados de singela imagem em concreta e definitiva existência em Deus.

                Não sou teólogo e muito menos tenho estudos nessa área. Quando muito, tenho algum conhecimento pouco aprofundado na religião católica. Considero-me um leigo que procura meditar sobre os mistérios da nossa existência. Sempre pensei em escrever algo sobre o insondável Amor de Deus. Aproveitando a claridade irradiante de Chiara Luce, agora escrevo, sem esquecer o respeito pelas opiniões contrárias.

                Ao terminar, estou convencido de que Clarinha, Ellen e Gema Galgani – a Santa que me acompanhou nas orações lavadas em lágrimas durante o sofrimento de Ellen – estiveram comigo na caminhada de redação deste texto, intercedendo e até mesmo mostrando que somos realente portadores da esperança que n ao decepciona.

                Desculpo-me com Franz Coriasco, por ter invadido a sua obra com essas reflexões; com Teresa e Ruggero, por ter imaginado um ínfimo paralelo entre a sua beata Chiaretta e o nosso anjo Ellen, a nossa “pequenina Flor”, como Lourdinha, minha mulher, gostava de chamá-la.

                Resta, por fim, agradecer a você, leitor, que chegou comigo ao final dessa jornada – este texto – com a paciência dos magnânimos.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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