Domingo, 23 de junho de 2013 - 10h48
Felipe Assad Azzi*
(guajaramirense / Advogado )
Trabalhávamos em Goiânia no mesmo Banco, no tempo em que os ânimos revolucionários tratavam de colocar o país na rota do desenvolvimento. Em plena “Marcha para o Progresso”, vez por outra, íamos a Brasília com tarefas que o ofício impunha.
Em certa viagem, na parada de Alexânia, Paulinho, muito convicto do que fazia, pediu na lanchonete um quibe, no que o seu padrinho interrompeu o próprio lanche para evitar uma tragédia:
– Ele não vai querer o quibe... Ele vai querer um pastel! Disse para o atendente.
Estupefatos, o garçom e Paulinho se olharam sem nada entender. De volta ao ônibus, dentro dos pormenores elucidativos, ficou devidamente esclarecido que “QUIBE recheado com ovo” não é quibe. É bolinho de carne com complexo de galinha.
Paulinho, como todo jovem em preparativos para casamento, formava com esmero o “pé-de-meia”, de modo a garantir, sem sustos, a realização do sonho de sua amada.
Ocorre que a sua conta bancária era manuseada diariamente por Fortunato Moscoso, que fazia os lançamentos nas contas correntes e, obviamente, ficava sabendo da dinheirada que rolava nas contas.
De quando em vez, Moscoso levantava uma ficha de conta e dizia:
– Belo saldo... É mesmo uma peça de respeito!
Paulinho era o “Caixa” e trabalhava ao lado de Moscoso. A cada “belo saldo” proferido, um frio corria na espinha de Paulinho e caía com um bloco de gelo nos calcanhares.
Um belo dia, queixou-se, dizendo-me:
– Felipe, eu não aguento mais... O Moscoso não me dá sossego comentando sobre o meu saldo de conta corrente... Acho que ele quer dinheiro emprestado e está preparando o bote... O que faço?
O consultor, em tom velhaco, respondeu:
– Tens que aplicar uma chave nele!
– Como chave? Retrucou Paulinho.
E expliquei:
– Chave pode ser um golpe ou contragolpe, depende da situação. No teu caso será um golpe de mestre... Dirás a Moscoso, antes que ele se manifeste, que estás endividado, que o dinheiro não te pertence, ao contrário, está todo gravado em compromissos com lojas de eletrodomésticos, coisas assim.
– Já entendi, disse Paulinho esfregando as mãos... Ele não me pega!
Chegada a ocasião, Moscoso foi direto:
– Paulo, que saldo competente, seu colega... Dá gosto!
E Paulinho, com a calma dos abastados:
– Eu me cuido financeiramente... Estou tranquilo!
Novamente, o padrinho interferiu, desta vez, enérgico:
– Como tranquilo? – Perguntei. – Se deves às Lojas Jóialar, Novo Mundo e Ponto Frio?!
Paulinho redarguiu áspero:
– Não devo nada a ninguém! De onde você...
No que foi interrompido pelo padrinho, alertando:
– A chave, Paulinho! A chave...
E Paulinho:
– Que chave? Eu não sei...
E, lembrando-se do combinado, quase rindo, vociferou:
– Eu sou um endividado... Como devo meu Deus!
Militante de boa-fé, de coração aberto, Paulinho não era resistente a essas incômodas investidas pecuniárias. Sensível, não refutava qualquer demanda e, por isso, sempre havia o risco de ceder ao primeiro impulso.
Desfeito o susto do temido empréstimo, veio o casamento, trazendo junto doce e bela moçoila guajamirense. Agora, já padrinho e afilhado oficialmente concebidos e, em presença da comadre Olgarina, degustando almoço de agradecimento, o padrinho, no seu natural calmo, disse com azedume:
– Olgarina, a sua mão é de fada... A comida está ótima!... Mas a farinha é uma desgraça, mais parece quirera para alimentar pintainhos... Vivo cem anos aqui e não me acostumo com essa serradura...
Paulinho, sempre obsequioso, veio com panos mornos:
– O padrinho não se avexe... Vou mandar vir de Guajará uma farinha que é uma tetéia. Feita de macaxeira tenra e pela mão perita de Isidoro, um dos agregados de meu pai.
Ventos e chuvas giraram a roda do tempo. E, em novo almoço, desta vez, presente Paulo Saldanha Sobrinho, um dos patriarcas da família Saldanha. Entre comentários avulsos, Felipe vira-se para Paulo, o pai, e diz:
– O Isidoro morreu, Paulo!
Tossindo devido ao engasgo da surpresa, Paulo reagiu:
– Mas como?... Se ao sair para essa viagem o deixei em perfeita saúde!
Tratei de tranquilizá-lo:
– Calma, homem... Não é nenhuma sangria desatada... Isidoro continua vendendo saúde... Apenas ainda não fez uma farinha há meses prometida.
Gargalhadas correram livres na pista da amizade porque os Saldanha, como os Azzi, sempre gostaram de uma galhofa.
Rolava o tempo como fábrica de velhice. Os dois compadres agora executivos, um em Cuiabá, o outro em Goiânia. Se encontram em Belém do Pará, a serviço, ocasião em que se deu esse diálogo mimoso:
– Compadre, que camisa jeitosa – disse eu.
E Paulinho, empertigado:
– Gostou, compadre? ... Comprei em Mineiros, cidade de Goiás... Vou mandar-te algumas na primeira oportunidade.
Passados alguns meses, em novo encontro na mesma cidade, estando os dois em companhia de José Nunes Pinto, virei-me de forma insólita e disse a Pinto:
– Uma cidade de Goiás sumiu do mapa!
Pinto, espantado, perguntou:
– Como? ... um desastre total, uma inundação?
– Não! – tratei de esclarecer. – O fato é que as fábricas de camisas faliram e levaram junto o infeliz município.
Risos... Gargalhadas soltas de três dignos símbolos da histórica estirpe galhofeira do BASA.
As coisas simples brotam naturalmente de corações puros e se projetam na eternidade da história. Com as amizades também é assim.
Paulinho ou Paulo, compadre ou afilhado, sempre foi muito presente em nossa casa. Chegava sem aviso. Mas a sua chegada era anunciada com peculiar “modinha” que cantarolava:
– ♪Filorintim, filorintim, filorintim... ♪ ♪
Kátia e Ellen, nossas filhas, ainda crianças, vibravam e se atiravam ao seu pescoço, num abraço inocente de confiante segurança.
Lourdinha e eu ríamos de suas pantomimas.
Esse, certamente, é o vínculo que nos une ainda hoje em amizade não fácil de explicar.
*Roondoniense, ex-Executivo Financeiro e, atualmente, vive em Campinas-SP
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