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Gente de Opinião

Luka Ribeiro

UM BONDE CHAMADO SAUDADE


       

Felipe Azzi

                Embarcou na Estação de Botafogo pensando em descer na Uruguaiana. Suspirava por um trajeto rápido para chegar à Faculdade de São Bento, onde se bacharelava em Teologia. O telefonema da Comunidade Pantokrator a retivera, além do previsível, à saída do Pensionato. Ir de ônibus, como de hábito, nem pensar. Agora, precisava ganhar tempo. O Metrô era a opção certa. Meio de transporte de massas que se caracteriza pela segurança e rapidez, além de evitar a nefasta poluição. No caso de Rio de Janeiro, porém, um castigo, pois priva os passageiros da linda paisagem à beira-mar, sem dúvida, uma das dádivas de Deus à Cidade Maravilhosa.

                As paredes subterrâneas passavam velozes. Meio sonolenta e já serena, permitiu-se a pequeno devaneio. Seu pai lhe contara muitas estórias cariocas por ele vividas, em adolescência sapeca e juventude marota, nos anos 50 do século passado, com justiça, chamados “anos dourados”. De repente, surge um Bonde com destino à Tijuca, da linha 66. Ao lado do Motorneiro estão dois adolescentes da mesma idade, treze anos. Conversam com infantil sotaque saloio lusitano, procurando importunar o mestre que conduz o Bonde, e dizem:

                 – Ó Manuel... Quando chugaste de Portugal?

                 – Bai fazeire duas semanas, após segunda-faira, que justamente é amanhã!

                – Que nubidades trazes de lá? – interessou-se Joaquim

                – Baim, a nubidade – disse Manuel – é o grande sucesso da nova fadista MARIA JOAQUINA DOBRADIÇA DA PORTA BAIXA!... (*) Tambaim, pudera, o patrocínio dela baim dos famosos TAMANCOS D’AVEIRO – os únicos que não taim curreias e são especiais para pessoas que sofrem de calos e calosidades.

                O Motorneiro (condutor do Bonde) olhou de soslaio e começou a fazer gestos dificultosos, como se fora necessária técnica apurada para conduzir o veículo – certamente querendo impressionar os garotos – ao que os dois moleques retomaram a conversa:

                – Diga-me, Joaquim... O vonde, não anda sobre trilhos?

                – Sobre trilhos e muito vaim firme sobre o solo! Afirmou um dos peraltas que incorporava pretenso Joaquim.

                – Então, como este “gajo” precisa de tanto remelexo para conduzire o vonde? – Instou Manuel, com olhar matreiro.

                Nisso, chega o Cobrador e pede o pagamento das passagens:

                – Qual dos dois bai pagaire?

                – De novo?... Quantas vezes temos que pagar a passagem? – Diz Ítalo, um dos garotos. E, virando-se para o outro, faz um registro noticioso:

                – Felipe... Aqui no Rio, a gente tem que pagar a passagem de Bonde várias vezes!

                O Motorneiro ruminou um azedume de cansaço:

                – Dupois de um dia travalhoso e exaustibo, pega-se pela frente dois trastes como estes... Só por Deus mesmo!

                Mas o Cobrador foi firme e sem acordo:

                – Ou paga ou desce!... No vaiço ninguém biaja. Desçam os dois!

                A dupla desceu, pois pegaria o próximo Bonde e repetiria a mesma estratégia, como sempre fazia, até concluir o sei itinerário. Mas, não abriu mão de mostrar folguedos de gozação, saltitando e repetindo: “OU PAGA OU DESCE... OU PAI OU MÃE... OU PRETO OU BRANCO... OU VAI OU FICA...”

                O devaneio foi invadido por uma aura de emotividade... Lembrou-se que o pai sempre nutrira a esperança de reencontrar o amigo Ítalo. Aos dezoito anos seus caminhos se afastaram: um foi prestar serviço militar na Força Aérea Brasileira; o outro optou pelo Exército Brasileiro. Desde então, nunca mais se viram. Assim pensando, conjecturou: Ítalo... O nome sugere origem italiana. Teria a família retornado à Itália?... Teria Ítalo se tornado um político carcamano?... Quem vai saber...

                A parada da composição no Catete despertou levemente a jovem que, logo-logo voltou ao cenário do sonho. Agora, vendo várias propagandas no interior do Bonde. Chamaram-lhe a atenção promoções antigas falando de remédios ainda hoje em uso, como Melhoral, Cafiaspirina, Biotônico Fontoura, Óleo de Fígado de Bacalhau, e até mesmo um display da Coca-Cola, na época, sem a popularidade consumidora de hoje. Pitoresca era uma estrofe sobre certo medicamento popular, indicado contra a fraqueza pulmonar, procurando convencer acerca da eficácia do produto:

                “Veja, ó ilustre passageiro, o belo tipo faceiro, que o senhor tem a seu lado...

                Entretanto, acredite... Quase morreu de bronquite... Salvou-o Rhum Cresotado!”

                Interessante é que a moça se imaginava embarcada no Bonde. Os passageiros formavam um grupamento cosmopolita alguns sentados e outros estribados na lateral direita do veículo. Uns engravatados, usando o complemento do chapéu, mas a maioria, rajando roupas leves, muito comuns nas quentes tardes cariocas. Voltavam, certamente, do trabalho para o reconfortante descanso do lar.

                O silencioso deslocamento do trem do Metrô cuidava de manter a solicitude do devaneio. De repente, surge o embarque, no Bonde, de uma senhora bastante obesa que, ao sentar-se, estralou o assento do banco de madeira. Pareceu-lhe ouvir um pequeno diálogo entre dois cavalheiros, trajando ternos brancos e sentados à sua frente. Que surpresa! Eram Carlos Estevão e Péricles, cartunistas de humor que divertiram leitores de jornais e revistas, como O CRUZEIRO e MANCHETE, de circulação nacional naquele tempo. Carlos Estevão, precavido contra “O IMPOSSÍVEL ACONTECE”, comentou em sussurro:

                – Por pouco, ela não quebra o banco...

                Péricles, em estilo de “AMIGO DA ONÇA”, completou:

                – Não quebrou... Mas, se quebrasse, seria a primeira vez que um Banco quebraria por excesso de fundos!...

                A voz do operador da composição, informando a chegada à Estação Uruguaiana do Metrô, apagou o final do devaneio de nossa heroína. Apressada, subiu as escadarias, logo assomando à Avenida Rio Branco em demanda ao Mosteiro de São Bento. Esbarrou, levemente, em uma senhora idosa, franzina e de meigo olhar, provocando a lembrança da doce “Zuzi”, sua avó Floriza que, com o passaporte do próprio nome, hoje enfeita o jardim onde o Senhor cultiva os puros de coração. Desculpou-se e, comentou em pensamento: “– Essa, com certeza viveu felizes dias nos anos dourados!”  Ainda rindo, recordou a impensável experiência de, momentos atrás, ter visitado o castelo dourado de uma época que todos recordam com saudades. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada, ao lembrar-se do pai e de outros pequenos casos que não se disseram presente ao cenário do breve sonho, no interior do Metrô.

                A respeito de Bondes – meio de transporte popular –, românticos protagonistas de um tempo bucólico do Rio de Janeiro, pensou em visitar o Museu da light, onde certamente se encontra o acervo de toda a história dos Bondes brasileiros.

                Ao transpor o umbral de entrada da rampa que leva ao Mosteiro, deixou para trás as coloridas quimeras, e entrou na realidade de seus estudos sobre Deus. E existe tema melhor para se estudar?

(*) Alusão a Lauro Borges e Castro Barbosa, humoristas criadores do programa PRK-30, sucesso radiofônico dos idos de 1950.

                             

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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