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Brasil – o país das incertezas políticas


Diego de Paiva Vasconcelos - Gente de Opinião
Diego de Paiva Vasconcelos

Entrevista da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes, com o professor doutor Diego de Paiva Vasconcelos, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, professor de Direito Constitucional do Curso de Direito do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Doutor em Direito pela Faculdade Nacional de Direito - FND da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes, onde ocupa a cadeira nº 30, cujo patrono é Fouad Zacharias Darwich.

1. ARL – Você é conhecido pela numerosa classe dos advogados, como um dos mais bem sucedidos causídicos de Rondônia. Qual o segredo do sucesso?

 

DV − Sucesso é algo muito relativo, pois depende de parâmetros e referências que são muito pessoais. Se o critério for tempo para si e pra família, acredito que sou muito bem sucedido. Se o critério for apenas profissional, gosto sempre de lembrar que Rondônia é terra de grandes causídicos e causídicas. Temos aqui excelentes quadros de advogados e advogadas muito bem sucedidos e que merecem toda minha admiração. Fico feliz por ver muitos ex alunos prosperarem na advocacia e em outras carreiras jurídicas.

 

2. ARL – Entre outros temas, o senhor escreveu em sua tese sobre ECI - Estado de Coisas Inconstitucionais. Por essa lógica, a Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, seria boa e as falhas seriam de seus aplicadores? Quais seriam as razões de uma Constituição tão festejada pelos juristas não resultar em mudança concreta de vida para a maioria da população?

 

DV − Na verdade, um capítulo apenas da minha tese trata do ECI. Acabei desenvolvendo, em paralelo, um longo trabalho de pesquisa sobre o Estado de Coisas Inconstitucionais que acabou sendo publicado em Portugal e que depois teve outra versão mais concisa, publicada no Brasil. Não afirmo que a Carta constitucional seja boa e as práticas ruins. É um trabalho acadêmico e não faço nele juízos morais, juízos sobre bem e mal. Apenas aponto fatos, estatísticas e exemplos concretos sobre falhas estruturais do sistema jurídico.

O Constitucionalismo moderno é resultado de um longo processo evolutivo do direito, aliás, o constitucionalismo e as constituições são uma característica, mesmo, da modernidade do direito. Uma constituição não pode ser confundida com o documento, o texto ou o artefato jurídico que lhe simboliza. A constituição é uma instituição. Tem que ver com a diferença direito-política. A Inglaterra nunca conheceu uma constituição escrita e até a década de 1990 não tinha sequer uma declaração escrita de direitos nos moldes relativamente padronizados no ocidente, mesmo assim a história constitucional inglesa foi fonte de inspiração de franceses e ingleses para suas respectivas revoluções no fim do século XVIII que moldaram o início do constitucionalismo moderno e de suas cartas constitucionais. A Magna Carta não é, como muitos pensam, uma declaração de direitos, mas para saber mais sobre isso vão ter que ler o livro que lanço ainda este ano: "O que garantem as garantias". Pode parecer um pouco forte o que vou dizer, mas a função da constituição é regular as interações do sistema jurídico com o sistema político e os demais sistemas funcionais da sociedade. Ela não tem a capacidade de transformar num passe de mágica a vida das pessoas ou de uma sociedade. Enquanto se editava o texto do que viria a ser a constituição americana de 1787, aquela sociedade convivia com a escravidão e o confisco em massa e mesmo assim seu texto falava em igualdade e proteção da propriedade. É muito difícil apontar um caminho ou uma receita para a construção de uma sociedade mais justa e igualitárias ou pelo menos com menos distorções sociais. Lembro bem de uma pergunta lançada em meu trabalho sobre o ECI: São favelas, hospitais públicos e filas famélicas nos postos de saúde constitucionais? O direito opera por meio da generalização de expectativas. É tudo que pode produzir, meras expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas. E as organizações do sistema jurídico tratam de qualificar fatos por meio do código direito/não direito (Recht/Unrecht).

Na sociedade acontece o que acontece e os fatos podem ser juridicamente qualificados. Esse é o potencial do direito: criar expectativas que se confirmam ou não segundo a qualificação de organizações judiciárias, por exemplo.

O que a constituição pode fornecer são parâmetros para essa qualificação de normas e fatos como constitucionais ou não. Vejamos a ADPF 347 que em sede de medida cautelar reputou, liminarmente, inconstitucional o estado de fato dos presídios brasileiros ainda em 2015; o que mudou de lá para cá?

São as práticas democráticas que realmente podem transformar um país. Precisamos de um projeto para o Brasil. Discutir na política uma pauta de consenso nacional. O locus das grandes transformações está na política, é lá que se tomam as decisões vinculantes que efetivamente podem alterar e transformar a realidade. Precisamos tratar a incerteza do futuro.

 

 3. ARL – Segundo estudiosos como Ives Gandra, essa Constituição, mais parlamentarista do que presidencialista, na parte relativa à gestão do Estado, e muito à frente de seu tempo, no que diz respeito a direitos fundamentais, causou, e vem causando, sérias dificuldades para o exercício do poder pelos presidentes pós-1988. Emendas aprovadas em momento de menor confronto ideológico produziram resultados positivos, mas a situação hoje parece estagnada, diante da polarização política vivenciada na quadra atual, com muita reclamação de quem assume o Poder Executivo. É possível, através de novas PECs, sanar esses problemas estruturais de governança, ou o melhor seria escrever uma nova Constituição Federal, condizente com o atual momento? 

 

DV − O Professor Ives Gandra é um grande jurista brasileiro que merece a admiração da classe dos constitucionalistas. Tem uma bela história. Fui apresentado a ele em 2014 pelo saudoso Dr. José Augusto Delgado, que foi ministro do STJ e era um jurista sem par. Há muito romantismo sobre a constituição de 1988 e sua suposta estrutura parlamentarista. Mas a constituição é eminentemente presidencialista. É isto que está positivado na norma e é assim que a política se conduz. Essa foi a escolha do constituinte originário.

O texto e a prática constitucional mostram o quanto e como o poder está concentrado nas mãos do Presidente da República. Eu até flerto com o parlamentarismo e o semi-presidencialismo, mas uma alteração como essas tem viabilidade muito estreita e há quem questione se seria mesmo possível propor uma reforma nesse sentido. Sinceramente, acho que há possibilidade de mudanças até mais simples para solucionar o problema da governabilidade. O Recall seria um instrumento importante. O Recall é a possibilidade de dissolver, pelo voto popular, um governo quando perde a legitimidade popular. Esse já seria um grande avanço.

Nosso presidencialismo de coalizão é um modelo que merece reparos. Desde o início dos anos 1990 a forma e os meios de articulação de blocos parlamentares tem sido objeto de graves denúncias que enfraquecem as instituições democráticas. As reformas eleitorais mais recentes que puseram fim às coligações partidárias para eleições proporcionais partem da ideia de se criar barreiras para redução do número de partidos. Temos que observar seus resultados ao longo dos anos. E eis o problema, essas reformas na legislação brasileira parecem o sudário de Penélope, tecidas de dia e desfeitas à noite. Democracia exige tempo, paciência e respeito pelas instituições. Democracia exige persistência e comprometimento. Precisamos definir um projeto de país. É isso que nos falta.  

 

4. ARL – Hoje, o parlamentarismo seria mais apropriado ao Brasil? ou ainda não alcançamos um grau de educação suficiente, para distinguirmos bem um primeiro ministro de um presidente? Um parlamento de um Congresso? O nosso modelo de democracia representativa está falido?

 

DV − Sinceramente, essa questão não é tão simples. O Presidencialismo funciona muito bem nos EUA, a monarquia na Inglaterra e o Parlamentarismo na Alemanha e em outras tantas partes do mundo.

Não acho que mudanças estruturais tão profundas sejam tão fáceis de serem implantadas e tampouco que possam dar respostas de curto prazo. Não adianta importarmos soluções que deram certo em outros lugares e imaginar que aqui terão o mesmo efeito. Nossa realidade é distinta.

Estabilidade e governabilidade são um problema para o parlamentarismo também, o que muda é uma aparente facilidade de se tratar crises políticas. O problema de nossa política, repito, tem sido o modelo de presidencialismo de coalizão num modal pluripartidário e um país com deformações históricas.

5. ARL – Voto obrigatório ou facultativo? O poder no Brasil foi apelidado de violino − segura com a esquerda e toca com a direita − isto é verdade?

DV − Voto obrigatório ou facultativo? É uma escolha difícil sobre a qual ainda não tenho uma opinião formada. Algo funcionar em outro país não significa que funcionaria aqui da mesma forma. Algo que demanda muita reflexão. Acho que direita e esquerda compõe uma velha semântica que não é mais capaz de explicar nossa política. Basta ter um aumento no preço do gás ou da gasolina para se querer uma intervenção estatal nos preços. O Brasil é estatista. Temos estatistas que se declaram como esquerda e estatistas que se declaram como direita, mas no fim são todos estatistas e ponto. Todos lançam mão de um estado cada vez maior e mais caro e isso acaba tendo apoio popular. Precisamos discutir com seriedade o modelo de estado que queremos. Direita e Esquerda não são palavras capazes de indicar os caminhos para avançar em direção ao futuro.

6. ARL – Sabe-se que o Brasil possui os poderes mais dispendiosos do mundo e as maiores distâncias sociais, é possível resolver ou diminuir esses problemas, ou são situações “imexíveis”? Melhor é se conformar, obedecer às leis, dar 6 meses do que você ganha para financiar o luxo dos poderes e ficar quieto, para não ser preso? Há espaço para uma revolução popular, no Brasil de hoje, onde as acomodadas lideranças políticas esqueceram que o pão de cada dia é nosso e não apenas deles?

DV − Somos um país sul-americano em vias de desenvolvimento e com instituições muito caras, realmente. A reforma tributária está na pauta política desde que eu era criança e no fim só serviu para ampliar nossa carga. Precisamos de uma ampla reforma administrativa e tributária. Reduzir custos e assim reduzir a necessidade de receita. E a revolução que precisamos é na educação de crianças e adolescentes.  

7. ARL – Que livros o confrade já publicou? Qual ou quais livros de ficção tornaram-se inesquecíveis, na sua vida?

DV − Eu passei a vida publicando artigos acadêmicos e revistas nacionais e internacionais. Minha dissertação de mestrado é frequentemente citada por estudiosos da história do direito constitucional, ela trata da constituição de 1824. Na carreira de professor nos tempos atuais vale mais publicar artigos em revistas de Qualis A1 e A2 que livros para fins da carreira acadêmica.

Passei os últimos anos publicando artigos. Os dois últimos já têm mais de 52 citações por outros juristas. Vou publicar meu primeiro livro ainda este ano, o título é “O que garantem as garantias?", está prefaciado pelo Ministro Reynaldo Fonseca do STJ.

8. ARL – Sabemos que o nobre acadêmico escreve contos, crônicas e poesias, quando teremos o prazer de vê-los publicados?

DV − A última leva de contos escrevi durante os 14 meses que passei na Itália. Estão prontos para publicação. Gostaria de vê-las publicadas em breve.

9. ARL – Você foi escolhido, recentemente, pelo CFOAB para presidir a Comissão Especial de Desjudicialização. Você acha que incentivar a solução de conflitos por meio de métodos alternativos extrajudiciais, desincentivando o ingresso de novos processos no Poder Judiciário, é suficiente para modificar o velho conceito de que justiça que tarda, falha.? É possível desjudicializar sem antes educar o povo e exigir do Legislativo leis específicas, num país que em 2020, contava com 77 milhões de processos pendentes, dos quais 55,8% se referiam à fase de execução, isto é, cerca de 42 milhões de processos???

DV − Essa é talvez a pergunta mais difícil sobre a missão mais árdua que recebi em 22 anos de vida profissional. Foi um chamado do Presidente Simonetti e atendi.

O Brasil é o país com o maior backlog processual do mundo. Já chegamos a bater o recorde de mais de 100 milhões de ações judiciais quando nossa população era de 205 milhões de pessoas. Já que o processo exige um requerente e um requerido, era como se cada brasileiro movesse um processo contra o outro.

O estado é o maior demandante/demandado, depois vêm bancos, aéreas, telefonias, empresas de energia, água e etc.. Acredito que essa propensão ao litígio tem raízes históricas e culturais e que o problema, assim, tomará muito tempo para correção de rota, mas como toda caminhada, essa mudança exige o primeiro passo. É isso que estou fazendo, dando os primeiros passos. E acredito que avanços significativos podem ser feitos com pequenas intervenções, como plataformas de ODR e técnicas alternativas de resolução de conflitos.

O judiciário fez significativos avanços, mas lá as coisas não acontecem no tempo das partes. Grandes empresas têm feito a opção pela mediação e arbitragem em grandes disputas entre si, justamente, porque entendem que o tempo é um recurso escasso e, por isso, precisoso. Quando tivermos vias eficientes de resolução de conflitos de menor porte econômico que se mostrem mais rápidas, menos custosas e eficientes será um caminho natural que se opte por elas.

10. ARL – “Quando nos deparamos com a situação que hoje vivemos, motivos há, para profunda tristeza, pois nossos políticos e a nossa política não são capazes de nos inspirar à construção do futuro. Ao contrário, produzem mais incertezas”: Esta frase é sua, publicada em 2018, isto quer dizer que, na sua opinião, não existe futuro político para o Brasil? Seria como a reedição do bordão do Tiririca − Pior que tá não fica? Ou fica?

DV − O presente é a unidade da diferença entre passado e futuro. O presente dura uma fração de segundo. O passado é memória e o futuro expectativa. O futuro sempre virá, apenas não sabemos como será.

Tratar a incerteza do mundo, tratar a inacessibilidade cognitiva do futuro por meio de decisões vinculantes e expostas à risco é função da política. É papel da liderança. O que um líder faz é enfrentar a incerteza e apontar caminhos para que vençamos essa permanente batalha contra as incertezas. A nossa política, diante da incerteza do futuro, produz mais cenários de incerteza. O Brasil precisa de líderes políticos comprometidos com sonhar e realizar, e um Brasil mais justo e menos desigual. Precisamos de estabilidade jurídica e política, mas basta ler os noticiários e olhar a sua volta para ver que ainda estamos distantes disso.

Continuo firme na afirmação feita em 2018.

Precisamos construir enquanto sociedade um projeto de futuro para o país, para nossos filhos, filhas, netos e netas. Desde 1808 nossos políticos vêm mostrando pouca conexão com os interesses verdadeiramente populares. Partem de nós, de cada um de nós, quaisquer mudanças. Precisamos esperançar uma sociedade mais justa e mais igual. E, sobretudo, lutar por ela. Sem isso, será sempre mais do mesmo.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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