Terça-feira, 3 de maio de 2022 - 14h58
Entrevista
da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes, com o professor doutor
Diego de Paiva Vasconcelos, mestre em Direito Constitucional pela Universidade
de Fortaleza, professor de Direito
Constitucional do Curso de Direito do Departamento de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Doutor em Direito pela Faculdade
Nacional de Direito - FND da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e
membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes, onde ocupa a
cadeira nº 30, cujo patrono é Fouad Zacharias Darwich.
1. ARL – Você é conhecido pela
numerosa classe dos advogados, como um dos mais bem sucedidos causídicos de
Rondônia. Qual o segredo do sucesso?
DV − Sucesso é algo muito relativo,
pois depende de parâmetros e referências que são muito pessoais. Se o critério
for tempo para si e pra família, acredito que sou muito bem sucedido. Se o critério for apenas profissional, gosto sempre de
lembrar que Rondônia é terra de grandes causídicos
e causídicas. Temos
aqui excelentes quadros de advogados e advogadas muito bem sucedidos e que merecem toda minha admiração. Fico
feliz por ver muitos ex alunos prosperarem na advocacia e em outras carreiras
jurídicas.
2. ARL – Entre outros temas, o
senhor escreveu em sua tese sobre ECI - Estado de Coisas Inconstitucionais. Por
essa lógica, a Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã,
seria boa e as falhas seriam de seus aplicadores? Quais seriam as razões de uma
Constituição tão festejada pelos juristas não resultar em mudança concreta de
vida para a maioria da população?
DV − Na verdade, um capítulo apenas da minha tese trata do ECI. Acabei desenvolvendo, em
paralelo, um longo trabalho de pesquisa sobre o Estado de Coisas
Inconstitucionais que acabou sendo publicado em Portugal e que depois teve
outra versão mais concisa, publicada no Brasil. Não afirmo que a Carta constitucional seja boa e as práticas ruins. É um
trabalho acadêmico e não faço nele juízos morais, juízos sobre bem e mal. Apenas aponto fatos, estatísticas e
exemplos concretos sobre falhas estruturais do sistema jurídico.
O
Constitucionalismo moderno é resultado de um longo processo evolutivo do
direito, aliás, o constitucionalismo e as constituições são uma característica, mesmo, da
modernidade do direito. Uma constituição não pode ser confundida com o
documento, o texto ou o artefato jurídico que lhe simboliza. A constituição
é uma instituição. Tem que ver com a diferença direito-política. A Inglaterra nunca conheceu uma constituição escrita e até
a década de 1990 não tinha sequer uma declaração escrita de direitos nos moldes
relativamente padronizados no ocidente, mesmo assim a história constitucional
inglesa foi fonte de inspiração de franceses e ingleses para suas respectivas
revoluções no fim do século XVIII que moldaram o início do constitucionalismo
moderno e de suas cartas constitucionais. A Magna Carta não é, como
muitos pensam, uma declaração de direitos, mas para saber mais sobre isso vão
ter que ler o livro que lanço ainda este ano: "O que garantem as
garantias". Pode parecer um pouco forte o que
vou dizer, mas a função da constituição é regular as interações do sistema
jurídico com o sistema político e os demais sistemas funcionais da sociedade.
Ela não tem a capacidade de transformar num passe de mágica a vida das pessoas
ou de uma sociedade. Enquanto se editava o texto do que viria a ser a
constituição americana de 1787, aquela sociedade convivia com a escravidão e o
confisco em massa e mesmo assim seu texto falava em igualdade e proteção da
propriedade. É muito difícil apontar um caminho ou uma receita para a
construção de uma sociedade mais justa e igualitárias ou pelo menos com menos
distorções sociais. Lembro bem de uma pergunta lançada em meu trabalho sobre o
ECI: São favelas, hospitais públicos e filas famélicas nos postos de saúde
constitucionais? O direito opera por meio da generalização de expectativas. É
tudo que pode produzir, meras expectativas que podem ser confirmadas ou
frustradas. E as organizações do sistema jurídico tratam de qualificar
fatos por meio do código direito/não direito (Recht/Unrecht).
Na
sociedade acontece o que acontece e os fatos podem ser juridicamente
qualificados. Esse é o potencial do direito: criar expectativas que se confirmam ou não segundo a
qualificação de organizações judiciárias, por exemplo.
O que
a constituição pode fornecer são parâmetros para essa qualificação de normas e
fatos como constitucionais ou não. Vejamos a ADPF 347 que em sede de medida
cautelar reputou, liminarmente, inconstitucional o estado de fato dos presídios
brasileiros ainda em 2015; o que mudou de lá
para cá?
São
as práticas democráticas que realmente podem transformar um país. Precisamos de
um projeto para o Brasil. Discutir na política uma pauta de consenso nacional.
O locus das grandes transformações está na política, é lá que se tomam as
decisões vinculantes que efetivamente podem alterar e transformar a realidade.
Precisamos tratar a incerteza do futuro.
3. ARL – Segundo
estudiosos como Ives Gandra, essa Constituição, mais parlamentarista do que
presidencialista, na parte relativa à gestão do Estado, e muito à frente de seu
tempo, no que diz respeito a direitos fundamentais, causou, e vem causando,
sérias dificuldades para o exercício do poder pelos presidentes pós-1988.
Emendas aprovadas em momento de menor confronto ideológico produziram
resultados positivos, mas a situação hoje parece estagnada, diante da
polarização política vivenciada na quadra atual, com muita reclamação de quem
assume o Poder Executivo. É possível, através de novas PECs, sanar esses problemas
estruturais de governança, ou o melhor seria escrever uma nova Constituição
Federal, condizente com o atual momento?
DV −
O Professor Ives Gandra é um grande jurista brasileiro que merece a admiração
da classe dos constitucionalistas. Tem uma bela história. Fui apresentado a ele
em 2014 pelo saudoso Dr. José Augusto Delgado, que foi ministro do STJ e era um
jurista sem par. Há muito romantismo sobre a constituição de 1988 e sua suposta
estrutura parlamentarista. Mas a constituição é eminentemente presidencialista.
É isto que está positivado na norma e é assim
que a política se conduz. Essa foi a escolha do
constituinte originário.
O
texto e a prática constitucional mostram o quanto e como o poder está
concentrado nas mãos do Presidente da República. Eu até flerto com o
parlamentarismo e o semi-presidencialismo, mas uma alteração como essas tem
viabilidade muito estreita e há quem questione se seria mesmo possível propor
uma reforma nesse sentido. Sinceramente, acho que há possibilidade de mudanças até mais simples para solucionar o problema da
governabilidade. O Recall seria um instrumento importante. O Recall é a
possibilidade de dissolver, pelo voto popular, um governo quando perde a
legitimidade popular. Esse já seria um grande avanço.
Nosso
presidencialismo de coalizão é um modelo que merece reparos. Desde o início dos
anos 1990 a forma e os meios de articulação de blocos parlamentares tem sido
objeto de graves denúncias que enfraquecem as instituições democráticas. As reformas
eleitorais mais recentes que puseram fim às coligações partidárias para eleições
proporcionais partem da ideia de se criar barreiras
para redução do número de partidos. Temos que observar seus resultados ao longo
dos anos. E eis o problema, essas reformas na
legislação brasileira parecem o sudário de Penélope, tecidas de dia e desfeitas
à noite. Democracia exige tempo, paciência e respeito pelas instituições.
Democracia exige persistência e comprometimento. Precisamos definir um projeto de país. É isso que nos falta.
4. ARL – Hoje, o parlamentarismo
seria mais apropriado ao Brasil? ou ainda não alcançamos um grau de educação
suficiente, para distinguirmos bem um primeiro ministro de um presidente? Um
parlamento de um Congresso? O nosso modelo de democracia representativa está
falido?
DV − Sinceramente,
essa questão não é tão simples. O Presidencialismo funciona muito bem nos EUA,
a monarquia na Inglaterra e o Parlamentarismo na Alemanha e em outras tantas
partes do mundo.
Não
acho que mudanças estruturais tão profundas sejam tão fáceis de serem
implantadas e tampouco que possam dar respostas de curto prazo. Não adianta importarmos soluções que deram certo
em outros lugares e imaginar que aqui terão o mesmo efeito. Nossa realidade é
distinta.
Estabilidade
e governabilidade são um problema para o parlamentarismo também, o que muda é
uma aparente facilidade de se tratar crises políticas. O problema de nossa
política, repito, tem sido o modelo de presidencialismo de coalizão num modal
pluripartidário e um país com deformações históricas.
5. ARL – Voto obrigatório ou facultativo? O poder no Brasil foi
apelidado de violino − segura
com a esquerda e toca com a direita − isto é verdade?
DV − Voto obrigatório ou facultativo? É uma escolha difícil
sobre a qual ainda não tenho uma opinião formada. Algo funcionar em outro país
não significa que funcionaria aqui da mesma forma. Algo que demanda muita reflexão.
Acho que direita e esquerda compõe uma velha semântica que não é mais capaz de
explicar nossa política. Basta ter um aumento no preço do gás ou da gasolina
para se querer uma intervenção estatal nos preços. O Brasil é estatista. Temos
estatistas que se declaram como esquerda e estatistas que se declaram como
direita, mas no fim são todos estatistas e ponto. Todos lançam mão de um estado
cada vez maior e mais caro e isso acaba tendo apoio popular. Precisamos
discutir com seriedade o modelo de estado que queremos. Direita e Esquerda não
são palavras capazes de indicar os caminhos para avançar em direção ao futuro.
6. ARL – Sabe-se que o Brasil possui os poderes mais dispendiosos do
mundo e as maiores distâncias sociais, é possível resolver ou diminuir esses
problemas, ou são situações “imexíveis”? Melhor é se conformar, obedecer às
leis, dar 6 meses do que você ganha para financiar o luxo dos poderes e ficar
quieto, para não ser preso? Há espaço para uma revolução popular, no Brasil de
hoje, onde as acomodadas lideranças políticas esqueceram que o pão de cada dia
é nosso e não apenas deles?
DV
− Somos um país sul-americano em vias de desenvolvimento e com instituições
muito caras, realmente. A reforma tributária está na pauta política desde que
eu era criança e no fim só serviu para ampliar nossa carga. Precisamos de uma
ampla reforma administrativa e tributária. Reduzir custos e assim reduzir a
necessidade de receita. E a revolução que precisamos é na educação de crianças
e adolescentes.
7. ARL – Que livros o confrade já publicou? Qual ou quais livros de
ficção tornaram-se inesquecíveis, na sua vida?
DV
− Eu passei a vida publicando artigos acadêmicos e revistas nacionais e
internacionais. Minha dissertação de mestrado é frequentemente citada por
estudiosos da história do direito constitucional, ela trata da constituição de
1824. Na carreira de professor nos tempos atuais vale mais publicar artigos em
revistas de Qualis A1 e A2 que livros para fins da carreira acadêmica.
Passei
os últimos anos publicando artigos. Os dois últimos já têm mais de 52 citações
por outros juristas. Vou publicar meu primeiro livro ainda este ano, o título é
“O que garantem as garantias?", está prefaciado pelo Ministro Reynaldo
Fonseca do STJ.
8. ARL – Sabemos que o nobre acadêmico escreve contos, crônicas e
poesias, quando teremos o prazer de vê-los publicados?
DV
− A última leva de contos escrevi durante os 14 meses que passei na Itália.
Estão prontos para publicação. Gostaria de vê-las publicadas em breve.
9. ARL – Você foi escolhido, recentemente, pelo CFOAB para presidir a
Comissão Especial de Desjudicialização. Você acha que incentivar a solução de
conflitos por meio de métodos alternativos extrajudiciais, desincentivando o
ingresso de novos processos no Poder Judiciário, é suficiente para modificar o
velho conceito de que justiça que tarda, falha.? É possível desjudicializar sem
antes educar o povo e exigir do Legislativo leis específicas, num país que em 2020,
contava com 77 milhões de processos pendentes, dos quais 55,8% se referiam à
fase de execução, isto é, cerca de 42 milhões de processos???
DV
− Essa é talvez a pergunta mais difícil sobre a missão mais árdua que recebi em
22 anos de vida profissional. Foi um chamado do Presidente Simonetti e atendi.
O
Brasil é o país com o maior backlog processual do mundo. Já chegamos a bater o
recorde de mais de 100 milhões de ações judiciais quando nossa população era de
205 milhões de pessoas. Já que o processo exige um requerente e um requerido,
era como se cada brasileiro movesse um processo contra o outro.
O
estado é o maior demandante/demandado, depois vêm bancos, aéreas, telefonias,
empresas de energia, água e etc.. Acredito que essa propensão ao litígio tem
raízes históricas e culturais e que o problema, assim, tomará muito tempo para
correção de rota, mas como toda caminhada, essa mudança exige o primeiro passo.
É isso que estou fazendo, dando os primeiros passos. E acredito que avanços
significativos podem ser feitos com pequenas intervenções, como plataformas de
ODR e técnicas alternativas de resolução de conflitos.
O
judiciário fez significativos avanços, mas lá as coisas não acontecem no tempo
das partes. Grandes empresas têm feito a opção pela mediação e arbitragem em
grandes disputas entre si, justamente, porque entendem que o tempo é um recurso
escasso e, por isso, precisoso. Quando tivermos vias eficientes de resolução de
conflitos de menor porte econômico que se mostrem mais rápidas, menos custosas
e eficientes será um caminho natural que se opte por elas.
10. ARL – “Quando nos deparamos com a
situação que hoje vivemos, motivos há, para profunda tristeza, pois nossos
políticos e a nossa política não são capazes de nos inspirar à construção do
futuro. Ao contrário, produzem mais incertezas”: Esta frase é sua, publicada em
2018, isto quer dizer que, na sua opinião, não existe futuro político para o
Brasil? Seria como a reedição do bordão do Tiririca − Pior que tá não fica? Ou fica?
DV − O
presente é a unidade da diferença entre passado e futuro. O presente dura uma
fração de segundo. O passado é memória e o futuro expectativa. O futuro sempre
virá, apenas não sabemos como será.
Tratar
a incerteza do mundo, tratar a inacessibilidade cognitiva do futuro por meio de
decisões vinculantes e expostas à risco é função da política. É papel da
liderança. O que um líder faz é enfrentar a incerteza e apontar caminhos para
que vençamos essa permanente batalha contra as incertezas. A nossa política,
diante da incerteza do futuro, produz mais cenários de incerteza. O Brasil
precisa de líderes políticos comprometidos com sonhar e realizar, e um Brasil
mais justo e menos desigual. Precisamos de estabilidade jurídica e política,
mas basta ler os noticiários e olhar a sua volta para ver que ainda estamos
distantes disso.
Continuo
firme na afirmação feita em 2018.
Precisamos
construir enquanto sociedade um projeto de futuro para o país, para nossos
filhos, filhas, netos e netas. Desde 1808 nossos políticos vêm mostrando pouca
conexão com os interesses verdadeiramente populares. Partem de nós, de cada um
de nós, quaisquer mudanças. Precisamos esperançar uma sociedade mais justa e
mais igual. E, sobretudo, lutar por ela. Sem isso, será sempre mais do mesmo.
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