Fernando Henrique Cardoso é um ditador latino-americano ou um reles golpista, sem qualquer apreço pela democracia, com um cartel de demonstrações de intolerância e oportunismo?
Acompanhei, perplexo, a campanha desenvolvida contra ele nos Estados Unidos, que acabou obrigando-o a cancelar sua participação num congresso acadêmico em Nova York, logo depois de ser homenageado por uma das maiores universidades do mundo, a de Harvard, em Boston, ali perto.
Não caberia comparar FHC ao general Pinochet, por exemplo, perseguido ao redor do mundo para pagar pelos crimes que cometeu contra o Chile. Mas se podia traçar um paralelo com o maior líder civil chileno até o golpe de Estado de 1973, para o qual ele deu sua contribuição.
Entrevistei o ex-presidente e senador Eduardo Frei, da democracia cristã. Ele não era qualquer um: tinha estofo. Mas foi um conspirador, que deu sua contribuição para a deposição do presidente constitucional do país, Salvador Allende, abrindo as portas do inferno para a matança de milhares de pessoas. Nunca aceitou a ascensão do adversário socialista. Se tivesse tido uma atitude decente, talvez tivesse atrapalhado um pouco o golpe militar liderado por Pinochet.
Fernando Henrique é muito melhor do que Frei. Nenhum outro intelectual com sua densidade chegou ao poder na América Latina, raros no mundo. Mário Vargas Llosa, que o supera, cada um no seu próprio ramo intelectual, não venceu a eleição para a presidência do Peru. E foi melhor assim.
A obra de FHC como presidente é suscetível a todas as polêmicas e exposta a críticas duras, sobretudo no seu segundo mandato (feitiço que ele criou, movido pela sede de poder e a incontrolável vaidade), devidamente punido pela crise internacional, que não pôde debelar.
Patrocinou barbaridades, como a venda vil da Vale na bacia das almas, e coonestou sujeiras dos seus correligionários e aliados (em especial, do PFL de ACM), mas deixou um legado positivo com o Plano Real, o melhor combate que a inflação teve em todo mundo.
Fernando Henrique não é golpista. Porque é um espírito tolerante, mas também porque a convicção de golpe para derrubar a presidente Dilma Rousseff, perseguir Lula e destruir o PT é dogma de fanáticos, já incapazes de ver a realidade e ser receptivos à verdade. Houve conspiração visando os três alvos da mesma maneira que conspiração desses alvos por mais poder e tudo mais na geleia geral esparramada sobre o Brasil, ombro a ombro com as figuras mais nojentas da república.
A grotesca visão de um golpe (político, branco, parlamentar ou que outra adjetivação o acompanhe) é uma ofensa ao Brasil. Os que o espalham, tomando-o por motivador contra a presença de FHC no congresso a que devia comparecer, não honram o país em que nasceram ou para o qual dedicaram seus estudos.
Infelizmente, Fernando Henrique recuou, atitude que pode se justificar por sua idade, aos 85 anos, sua condição tucana e a vaidade que lhe tufou os peitos pela homenagem em Harvard e o risco das contrariedades seguintes. É um momento melancólico, que nem a cousciense mauvaise de estrangeiros açodados por purgá-la, atenua. A inteligência humana, mais uma vez, é a vítima.