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Lúcio Flávio Pinto

Bolsonaro, nostalgia e ideologia - Por Lúcio Flávio Pinto


Artigo de João Ferreira Dias, pesquisador do Centro de Estudos Internacionais, em Portugal, que saiu hoje no jornal Público. Uma visão partir do promontório colonial que mais profundamente atuou no Brasil, colônia até hoje. O desejo de se solidarizar com o drama político brasileiro, analisando-o a partir de critérios morais que comprometem a percepção da complexidade da realidade concreta, e punir o sentimento de culpa pelo passado acusador prejudica a compreensão dos europeus do drama brasileiro e latino-americano. Mesmo assim, pode ser motivação para um reexame do que está diante dos nossos olhos e nem sempre vemos.

Existe um consenso teórico entre quem estuda a nostalgia como produto psicológico e sociológico o qual postula que para que esta se expresse é necessária a ação degradadora do tempo, uma ação capaz de produzir esquecimento. Sem esquecimento não existe nostalgia. É por isso que Mascarenhas Barreto escreveu que “chega gente a ter saudades das horas más que passou”. Ora, por essa razão, a nostalgia é uma aspiração, não raras vezes, por um lugar que não existe ou por uma imagem idílica de um passado cristalizado na lembrança, uma lembrança que é individualmente tecida, mas socialmente instituída, porque a nostalgia necessita de correspondência com os demais sujeitos.

Mas o que tem isto a ver com as eleições presidenciais brasileiras deste mês? Tudo. Porque afastado judicial e politicamente Lula da Silva, Jair Bolsonaro aparece como o mais provável próximo Presidente da República brasileira e, provavelmente, o último desta era democrática, uma vez que é seu sonho instaurar um governo de feição ditatorial-militar.

Ora, o programa ideológico de Bolsonaro assenta em premissas nostálgicas, porque idealiza todo o passado colonial brasileiro e responsabiliza os negros pela escravatura – chegou a afirmar que os comerciantes de escravos nem colocaram os pés em África, que foram os negros que se ofereceram para serem escravos –, retirando a mácula da ação portuguesa e mais tarde da coroa brasileira. Portanto, no discurso de Bolsonaro, o mito do bom selvagem de Rousseau é transformado no mito do bom colonizador. Não é por acaso que o seu lema é, precisamente, o mesmo de Salazar, “Deus, Pátria, Família”.

O que Bolsonaro promete aos seus eleitores é a restauração da “ordem” e do “progresso”, que são os lemas da bandeira brasileira, que o candidato da extrema-direita considera ter sido cumprido – parcialmente, pois já afirmou que o número de mortes não foi suficiente – durante o período da Ditadura Militar. Essa promessa de forte feição religiosa, próxima à instauração do reino de Deus na terra – não é por acaso que a larga maioria dos evangélicos apoiam Bolsonaro e não os candidatos declaradamente evangélicos (recorde-se que Bolsonaro é católico) –, é maniqueísta, opondo o bem, representado nas elites históricas brasileiras, ao mal, representado nos pobres.

Jair Bolsonaro não leva em consideração os fatores históricos ligados à escravatura e ao pós-abolição para entender a formação de uma classe pobre e negra, e das favelas, não considera a forma como os privilégios sociais foram sendo encerrados nas mãos das mesmas famílias e zonas urbanas, i.e., dos brancos, católicos e de classe média/alta.

No seu discurso, crime, pobreza, negritude e preguiça estão ligados de forma determinante. Pior, eles surgem como uma opção e jamais como produto de uma sociedade esventrada pelo fosso entre brancos-ricos e negros-pobres.

Num país cansado de corrupção, onde os avanços sociais do PT foram secundarizados pelos escândalos, onde a imprensa alinhada com os golpistas que arquitetaram a destituição de Dilma Rousseff filtra a informação e a forma como esta chega, onde as classes sociais detentoras do capital financeiro permanecem arreigadas a uma ideologia de um país esquadrinhado entre a Casa Grande e a Senzala, Bolsonaro e os seus aliados têm sabido cavalgar a onda.

Eles sabem que o brasileiro de classe média se revê nesse discurso de ódio racializado. O facto de Bolsonaro não ter outro discurso que não o ódio, de não apresentar qualquer programa de governo, não é relevante. Os fatos não são relevantes. O importante, neste contexto, é o clima de histeria em torno de um candidato que promete ódio. Que prega sobre a defesa dos valores da família tradicional, mas que vai no terceiro casamento, e que tem um filho ilegítimo, ou que ameaçou de morte uma das esposas. Ou, por exemplo, que defende o combate à corrupção, mas que esteve envolvido num esquema de subornos.

Em nada adianta mencionar que Bolsonaro se orgulha de gastar o erário público com viagens e uma vida de luxo. Não adianta mencionar que numa carreira política de quase 30 anos, as únicas propostas de lei que votou a favor foram as que beneficiavam os deputados, como aumentos de salários e verbas para despesas. Para a saúde ou educação o seu voto foi sempre negativo.

Neste cenário, a tentativa de homicídio de que foi vítima serviu para reforçar o seu lugar como salvador, como messias. O messianismo expresso em Bolsonaro, é fortemente apoiado pelo eleitorado conservador-religioso, ao apresentar linhas ideológicas sedutoras a quem imagina um Brasil muito distante do país miscigenado, multicultural e multiétnico, para revitalizar a utopia do país dos salões nobres, das fazendas, que levou ao incentivo massivo de imigração europeia, no intento máximo de “branqueamento social”.

É por isso que o discurso do armamento popular, do “bandido bom é bandido morto”, do genocídio de jovens negros, de esterilização dos pobres, de combate à homossexualidade, à diversidade religiosa e de subalternização do papel da mulher, se tornou tão apelativo numa população que vive com medo de sair às ruas. A promessa de matar todos os pobres, criminosos e potenciais criminosos, promessa tão perigosa quanto devastadora, tem seduzido milhões de pessoas. Curiosamente, no segundo país do mundo onde a população vive mais alheada da realidade. Não é estranhar que em favor da ideologia de extrema-direita de Bolsonaro, se tenha propagado no Brasil o mito de que o nazismo alemão teria sido de extrema-esquerda, colando-o ao Partido dos Trabalhadores (PT).

Compreende-se que as repercussões da eleição de Bolsonaro no mapa social brasileiro serão tremendas. Como ele fez questão de anunciar, os índios serão expropriados das suas terras. O massacre de jovens negros agudizar-se-á. A intolerância religiosa, que já possui forte feição de guerra santa, terá maior cobertura política. A cultura de estupro e impunidade que rasga o Brasil será cada vez maior. O país do ocidente que mais membros da comunidade LGBT mata terá um programa ideológico que o fundamenta.

Como português, preocupa-me que num país ocidental e com uma população teoricamente informada como a nossa, existam tantos portugueses que simpatizam com o discurso de Bolsonaro, um discurso que, repita-se, é misógino, racista, anti-LGBT, fascista, apoiante da ditadura militar, anti-liberdade religiosa, que propõe como solução para a pobreza a castração dos pobres.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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