Sábado, 2 de junho de 2018 - 10h58
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal
Belém (PA)
O alagoano Audálio Dantas, que morreu (*) em São Paulo, aos 88 anos, foi o homem mais importante do Brasil na semana da morte de Vladimir Herzog, em outubro de 1975. A ditadura estava num dos seus momentos de brutalidade desenfreada, de violência bestial, clima que explica a execução do frágil jornalista sob tortura selvagem e a encenação para o álibi de suicídio. Já fora corajosa a decisão de Audálio de assumir a presidência do maior sindicato de jornalistas do País.
A imprensa era alvo constante das pressões e agressões do regime. Mas o que ele fez era então simplesmente inimaginável.
Com cautela e serenidade, mas altivez e determinação, seu comportamento não deixou dúvida: ele não engoliria a versão oficial de que Herzog se suicidara momentos depois de se ter apresentado espontaneamente para ser interrogado pelo DOI-Codi, o topo da engrenagem de repressão armada do Leviatã castrense. Nem a pior das acusações que pudesse ser feita contra ele podia levar à suposição de que seria torturado e morto.
Herzog foi o instrumento dos porões incontrolados ao presidente que autorizava a tortura, mas não a queria caótica. Teria que se ajustar à voz de comando do general Ernesto Geisel, cioso da sua autoridade, desde seus primórdios como anfíbio (em parte militar, em parte político)conivente com a tortura.
Audálio emprestou a sua figura respeitável para avalizar a presença de quem quisesse participar do sepultamento de Herzog. Não foram tantos os que compareceram ao cemitério (com um tenso olhar de medo), mas foram muitos se o guia se o guia fosse alguém menos afirmativo estivesse no comando das ações.
E foram milhares os que foram ao ato ecumênico do sétimo dia, na catedral da Sé, contornando as barreiras da polícia e a ameaça dos cães, agora sob as bênçãos de dom Paulo Evaristo Arns e do rabino Harry Sobel (não lembro do nome do pastor e estou emocionado demais para ir ver no Google).
As pessoas, que chegaram tensas e intimidades ao templo, cresceram diante do ambiente solene e das palavras irradiantes de coragem de Audálio e dos celebrantes. Na reversão do estado de espírito, de intimidação para reação indignada, o vento da democracia, soprado pela coragem cívica, se espalhou pelo país e a linha dura começou a se desfazer, os porões a serem abandonados e a luz da liberdade a surgir no horizonte.
Graças ao alagoano Audálio Dantas, uma das pessoas mais generosas, boas e sensíveis que conheci. Um jornalista com inteligência e alma, guiada por um olhar apurado pela percepção do íntimo das pessoas.
Anos depois, ele me ligou, de São Paulo para Belém. Queria um texto meu de linha de frente para uma antologia de reportagens que estava organizando e que resultou no belo livro Repórteres, publicado pelo Senac. No que escrevi, me comparei a um bombeiro, correndo de um front para outro na fronteira amazônica, ora atrás do fogo literal que consome a floresta, ora do fogo saído de armas a explosão que liquida seres humanos.
Cinco anos atrás, nos reencontramos em São Paulo para recebermos nossos prêmios e lançarmos nossos respectivos livros, o dele sobre Herzog e o meu sobre a Amazônia, sua generosa dedicatória tinha a marca do homem que pode ser o mais humilde que é possível ser por saber que não precisa reivindicar a própria grandeza. Ela lhe é inata.
E persistirá associada ao seu nome enquanto houver de seus acompanhantes vivos (e dos que o acompanham pela sua obra) para testemunhar: conhecer Audálio Dantas foi uma honra e um prêmio valioso.
(*) O jornalista morreu em 30 de maio.
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