Além do público interno, só os censores e, através deles, os seus chefes em Brasília, liam as matérias, fartamente seqüestradas das páginas a serem impressas e remetidas aos leitores.
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Escrevi este texto para minha apresentação durante o 4º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, entre 9 e 11 de julho, ao qual não pude comparecer, atado aos processos judiciais em Belém.
Devo à sensibilidade dos dirigentes da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) o melhor tema que já me foi proposto desenvolver, sobre a relação da minha vida com a história contemporânea da Amazônia. Meu maior patrimônio profissional resulta de ter estado no lugar certo na hora certa na Amazônia durante duas décadas, pelo menos até o final dos anos 80 do século passado. Exatamente, até 1989. Por que justamente nesse ano? Porque foi quando pedi demissão de O Estado de S. Paulo, onde trabalhei por 18 anos seguidos. Até dois ou três anos antes dessa data, nenhuma proposta minha de viagem foi recusada ou sequer posta em questão pela sede paulistana. Fui aonde quis, pelos dias que quis, até que se consumou a destruição de uma das místicas que constituíam o encanto do jornal mais influente do Brasil.
Orgulho-me de ter estado na origem do compromisso que o Estadão assumiu com a sorte da última grande fronteira de recursos naturais do país – e do mundo. Esse compromisso começou a ser tecido no início de 1971. Num dos movimentos pendulares que então fazia entre o Sul Maravilha e a Jungle, decidi mais uma vez voltar a Belém. Ia interromper meu curso na Sociologia e Política, a mais antiga das escolas de ciências sociais do país, para atender ao chamado da selva, que ecoava pelas minhas entranhas de caboclo – caiado de europeu – das margens alvas do mais belo rio do planeta, o Tapajós. A Transamazônica avançava e a Amazônia encolhia, desaparecia. Era preciso ver, ouvir, ecoar, propagar.
Tudo ia virar sertão
Meu sinal de alerta definitivo soou enquanto entrevistava o engenheiro Eduardo Celestino Ribeiro para uma antológica edição especial da revista Realidade, da Editora Abril, comandada com maestria por Raimundo Rodrigues Pereira. Além de ser dono da construtora Cetenco, Ribeiro era fazendeiro no sul do Pará. Do alto do prédio da Federação das Indústrias de São Paulo, ainda na sede velha, no viaduto Maria Paula, ele discorria com fluência e determinação sobre o novo mundo, que ele e outros redivivos bandeirantes paulistas estavam criando. Onde havia mata, formavam pastos e distribuíam gado, avançando sobre a floresta a partir de uma base intermediária, que foi estabelecida no Planalto Central na onda anterior de avanço da fronteira econômica nacional, a “corrida para Oeste”. Tudo ia virar sertão, inclusive aquela região, bem maior do que a outra parte do Brasil, demarcada por sua exuberante floresta, a Amazônia.
Por ser sertão, Deus que tratasse de se armar se quisesse entrar ali. O redemoinho da motosserra, do “três-oitão” e outras ferramentas equivalentes da suposta modernidade entrariam em ação. Para construir a sua Amazônia, de pastos, gado, estradas, hidrelétricas, mineração e blitzkrieg de ataque, esses bandeirantes modernos iriam destruir a minha Amazônia, centrada no equilíbrio ecológico em torno da floresta nativa. Os seus habitantes estavam muito mal informados sobre essa nova, decisiva e irremediável história. Eu tinha que tentar alertá-los sobre a situação que se constituía, numa surdina inaudível nas capitais, ainda encantadas pelo canto da sereia de além-mar, da cultura metropolitana. Não podia atuar do lado de fora. O melhor combate precisava ser travado diretamente nos fronts criados no interior pelas rodovias de penetração, que estavam pondo abaixo a razão de ser da Amazônia, o traço que a distingue das demais regiões da Terra: a sua floresta.
A melhor rede de sucursais e
correspondentes do País
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No Estadão, o jornalista Raul Martins Bastos comandou a maior rede nacional de sucursais e correspondentes /ABI
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Zélia, minha colega e mulher de Laerte Fernandes, do Jornal da Tarde, me colocou em contato com
Raul Martins Bastos, que comandava as sucursais e correspondentes do Estadão. Acertamos para eu assumir como correspondente do jornal na capital paraense. Raul garantiu seu respeitado endosso para as viagens que eu começaria a fazer, produzindo quantidades industriais de matérias, que iriam se alastrando pelas páginas do Estado, ocupando espaços cada vez maiores, pulando para o topo da pauta jornalística.
Em 1973 voltei a São Paulo para concluir minha graduação em sociologia, o curso pelo qual optei, jornalista profissional no qual me transformara quando ainda era estudante secundarista, descrente de que a comunicação social me pudesse servir melhor. De 1973 a 1974 montamos para
o Estadão a melhor rede de sucursais e correspondentes que já houve na imprensa brasileira.
Sabíamos mais e melhor do que a ditadura sobre os acontecimentos em todo território nacional. Muitas vezes essas informações não chegavam aos leitores, bloqueadas a meio caminho pela censura prévia estabelecida na redação. Mas continuamos a produzir, todos os dias, um retrato completo do País. Além do público interno, só os censores e, através deles, os seus chefes em Brasília, liam as matérias, fartamente seqüestradas das páginas a serem impressas e remetidas aos leitores. Por esse caminho tortuoso, as informações rejeitadas pelo governo chegavam a algum destino, tornando-se matéria de opinião pública.
Um periscópio acima da censura
Talvez esse mecanismo explique um fato que o pesquisador da coleção de
O Estado de S. Paulo não deixará de observar: a liberação para publicação, pelos Torquemadas fardados, de matérias que atingiam o todo-poderoso governo através da política de ocupação por ele aplicada na Amazônia. Todas as distorções desse “modelo” de desenvolvimento econômico do País se evidenciavam no seu capítulo amazônico: a destruição da natureza (sobretudo da floresta, no que viria a se caracterizar como o maior desmatamento da história da humanidade), a desorganização da vida social, a corrupção, a violência etc.
Por que essa maior tolerância ao desvio da liberdade de imprensa em temas amazônicos? Porque não havia uma unidade elementar entre os senhores do baraço e do cutelo quando se tratava de Amazônia. Grupos nacionalistas, temendo que a cúpula do governo pudesse estar entregando, em vez de integrar a região, pressionavam para que as informações amazônicas pudessem circular. Eles próprios não sabiam o que de fato acontecia, embora integrassem o governo. A Amazônia ainda era uma incógnita. E em nenhum lugar ela se achava mais bem refletida do que nas páginas do
Estadão. Esse periscópio tinha que permanecer acima da linha da censura. E permaneceu.
No final de 1974 eu estava de volta a Belém, desta vez para não sair mais. Montamos a primeira sucursal verdadeiramente regional da imprensa brasileira. Ela seria a autora do texto final de todas as matérias nascidas na Amazônia. O honorável serviço de reescrita na sede não alteraria mais o conteúdo dos despachos, se eles atendessem aos critérios editoriais da empresa, tecnicamente falando. Nada do enfoque exótico, colonial, empobrecedor, que caracteriza as abordagens espasmódicas da imprensa brasileira da “questão amazônica”.
Em cada capital, um bom jornalista
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Belém: uma central de informações sobre a Amazônia marcou época nos anos 1980 /DIVULGAÇÃO
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Belém comandaria uma rede de correspondentes espalhados por toda Amazônia Legal, quase dois terços do território brasileiro. Em cada capital amazônica e, no caso do Pará, em mais duas cidades interioranas, foi instalado um bom jornalista, com contrato de trabalho em carteira (característica inédita na organização empresarial jornalística), salário fixado pelo máximo local e com apoio logístico para ir aonde os acontecimentos exigissem. A palavra dessa rede era a verdade, até prova em contrário.
E assim foi por algum tempo, até que uma série de fatores, incluindo as permanentes tensões e entrechoques entre o que os patronos da ocupação da Amazônia pensavam em sua sede e o resultado de sua política no local, revelada sem retoques ou mistificações, tornou a convivência conflituosa impossível. A rede começou a ser desfeita, a independência encolheu, o espaço nas páginas do jornal encurtou, a visão da sede se modificou. Em 1989 esses tamanhos já eram mínimos e achei que era a hora de romper de vez com a grande imprensa. Pedi o chapéu e fui me acantonar no
liliputiano Jornal Pessoal, que já estava com dois anos de atividade.
Sabia que, a partir daí, enfrentaria a clava do Golias com o estilingue de um David, sem a certeza da parceria divina para inverter a correlação de forças. Graças aos meios do
Estadão e também do jornal ao qual me associei localmente,
O Liberal, ainda não transformado em refém dos interesses mercantis da segunda geração da família, vi com meus próprios olhos e pude anotar, com riqueza de detalhes, tudo de relevante que aconteceu na Amazônia ao longo das décadas de 70 e 80. Nesse período o processo histórico da região foi deslocado de vez da margem dos rios para o interior da floresta, com um resultado chocante e brutal para produto que ainda não tem 50 anos: a derrubada de quase 20% da sua superfície coberta por floresta, o equivalente a três vezes o território de São Paulo, no qual se acha concentrado um terço da riqueza nacional.
Questão planetária
Sei que o que vi e sobre o que escrevi é a própria história em processo, uma história como poucas houve e, espero, poucas voltarão a se repetir, com suas cores dramáticas e infamantes. Com os olhos de um adolescente de 16 anos, vi cientistas de todo mundo reunidos em Belém, no centenário da mais antiga instituição de pesquisa regional, o Museu Paraense Emílio Goeldi. Percebi então que a Amazônia á uma questão planetária, que, para o bem e para o mal, não pode ser tirada desse âmbito mais amplo. Aos 18 anos, fiz a primeira viagem à Serra dos Carajás, que se constituiria a maior província mineral do mundo.
Aprendi que a riqueza do subsolo da Amazônia lhe impõe este como o primeiro desafio de inserção global. Conheci muitos bravos personagens da história amazônica que perderam seu papel nesse drama p
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Projeto Jari, do qual o autor foi testemunha, às vezes solitária, de acontecimentos únicos, como o ingresso, no rio Jari, da fábrica e da termelétrica trazidas do Japão pelo milionário americano Daniel Ludwig /VICO.BRASÍLIA
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or terem sido assassinados, como Chico Mendes, Gringo e centenas de cidadãos esmagados pelo trator da história oficial. Fui testemunha, às vezes solitária, de acontecimentos únicos, como o ingresso, no rio Jari, da fábrica e da termelétrica trazidas do Japão pelo milionário americano
Daniel Ludwig, com quem tercei armas.
Fui alvo de ameaças e vítima de agressões. Aos poucos, minha indignação foi crescendo e meu desejo de intervir nessa realidade extrapolou limitações. Não só escrevia, em todos os lugares que se me oferecessem. Também bradava aos quatro ventos, num circuito de palestras dentro e fora do Brasil que se expandiu em espirais.
Incômodo para manipuladores da verdade
Tanto escrevi e tanto disse que meu texto se tornou lido e minha voz, ouvida. Passei a incomodar, acho que em especial porque a força da minha indignação não alterou o meu compromisso com a verdade, no desempenho técnico da minha função de reportador dos fatos, escrivão do cotidiano. Era tão incômodo ouvir o que eu dizia quanto difícil desmentir o que eu divulgava. Cometi o pecado mortal de incomodar os manipuladores da verdade e os donos do poder. Não por mera coincidência, em plena democracia, me tornei um dos jornalistas mais processados e condenados, principalmente por outros cidadãos que alegam intimidade com o jornalismo, já que possuem empresa jornalística.
Com o toque sugestivamente kafkiano de que, queixando-se de serem vítimas de minhas inverdades, não utilizam seu enorme poder de comunicação para contrapor a elas suas verdades, em debate público. Pelo contrário, fazem da técnica do silêncio, combinada com a utilização do maleável poder judiciário, enquanto força pretoriana a serviço dos seus objetivos e caprichos, o instrumento para me esmagar e destruir.
Felizmente, a solidariedade de pessoas como os dirigentes da Abraji impede que a alegoria de um Prometeu atado à rocha desnuda de floresta, para receber cirúrgicas bicadas diárias de magistrados e falsos jornalistas, se consume. No entanto, minha permanência em Belém, a perda da minha capacidade mínima de deslocamento nestes últimos longos e sofridos anos, com 33 processos judiciais em 17 anos, 19 deles promovidos por três dos oito sucessores de Romulo Maiorana pai no império do grupo Liberal indica que os bárbaros estão vencendo.
É a realidade, mas não é uma boa moral. Convido todos vocês, neste dia, a não aceitar essa moral depravada e apostar na utopia de que o jornalismo, como aconteceu nas páginas do Estadão entre as décadas de 70 e 80 do século passado, volte a ser o retrato sem retoques da Amazônia, cheio de verdade e indignação.
Lúcio Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal, em Belém e colaborador da Agência Amazônia. Acesse o Jornal Pessoal.