Quinta-feira, 13 de outubro de 2016 - 21h38
O Conselho Nacional de Justiça decidiu, ontem, que a omissão juíza Clarice Maria de Andrade contribuiu para os abusos que a menor L. S. P., de 15 anos, sofreu numa cela lotada de homens em Abaetetuba. Durante 26 dias, ela foi espancada, teve a pele queimada com cigarros e foi estuprada seguidamente. A jovem fora presa sem julgamento, sob a acusação de tentar furtar um celular.
O relator do processo no CNJ, em Brasília, Arnaldo Hossepian concluiu que ficou “evidente a falta de compromisso da magistrada com suas obrigações funcionais”. A defesa alegou que ela desconhecia as condições da prisão.
A magistrada foi afastada do cargo que vinha ocupando, junto à cúpula do tribunal de justiça, mas continuará a receber o salário integralmente. Ficará em disponibilidade durante os próximos dois anos. Significando que receberá em dia sem precisar trabalhar.
Em 2010 o CNJ puniu a juíza com a aposentadoria compulsória, com vencimentos proporcionais, que é a pena mais drástica prevista pela Lei Orgânica da Magistratura. A juíza recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que anulou a decisão e determinou que o CNJ voltasse a examinar o caso.
Clarice Andrade retomou suas atividades normais e só agora, seis anos depois da primeira decisão e nove depois do crime, o CNJ concluiu a apreciação. Optou por uma pena ainda mais branda, a colocação do punido “disponibilidade”, recebendo tudo que lhe caberia se estivesse na ativa.
Isso é punição? Parece mais antecipação proveitosa da aposentadoria, a que nenhum cidadão teria direito. Os policiais acusados foram punidos com a demissão.
Para assinalar esse resultado, republico a primeira matéria que escrevi sobre a questão, no Jornal Pessoal de dezembro de 2007:
VIOLÊNCIA
O que ninguém vê
Toda vez que se mira no espelho do mundo, o Pará percebe que seu reflexo é triste e assustador. A repetição dessa sensação ruim foi ocasionada agora por mais um caso de brutalidade, que devolve o Estado a um tempo primitivo. Desta vez a inércia diante do absurdo foi quebrada. Terá alguma consequência
L.S. P. foi presa pela oitava vez nas ruas de Abaetetuba, no dia 21 de outubro. Como sempre, tentou um novo furto e foi flagrada. Antes, perambulava drogada pelas ruas da cidade, de 50 mil habitantes, invadia casas, se prostituía. Nunca feriu ou agrediu ninguém. Já parecia indiferente às circunstâncias. Seguiu sem resistências para a delegacia, mas quando entrou na prisão sua vida mudou para sempre. Também a vida de Abaetetuba e do Pará.
Seu “caso” ganhou repercussão nacional e internacional. A violência brutal na Amazônia voltou a ocupar manchetes da imprensa de todo mundo. A opinião pública cobrou providências, o governo tratou de renovar as promessas, enquanto mudava alguma coisa. Talvez para que, em pouco tempo, tudo volte a ser como era antes.
O enredo chocante começou a se delinear quando a delegada Flávia Verônica Monteiro Pereira prendeu L. S. P. (a última das prisões um mês antes) e não fez a sua identificação completa. Ela alegaria, depois, que não dispunha dos documentos necessários para realizar essa tarefa. É difícil saber da idade de adolescentes em Abaetetuba apenas pela aparência: a prostituição infantojuvenil é um dos mais graves problemas sociais do município, e não é de hoje.
Mas se alguma coisa tem sido feita para mudar essa situação, trata-se de iniciativa cosmética: o problema só faz se acentuar. Meninas se prostituem a partir dos 10 anos, por 10 ou 20 reais, um prato de comida, algum tipo de droga, sobretudo maconha, ou um programa qualquer. Circulam livremente pelas ruas oferecendo seus “serviços”, semi-despidas.
Demanda é o que não falta. No porto vizinho de Vila do Conde há sempre de cinco a 10 navios de todas as bandeiras ancorados ou ao largo, esperando vez para descarregar produtos ou embarcar alumina, alumínio e caulim que saem das fábricas do distrito industrial de Barcarena, o maior do Pará e um dos mais importantes do país. Marinheiro estrangeiro em embarcação de longo curso atracada é sinônimo de prostituição em zonas portuárias. Abatetuba, como Barcarena, cumprem essa função.
Para os padrões locais, L. S. P. já é uma veterana, com quatro ou cinco anos nas ruas, em moto contínuo. O delegado podia lhe atribuir sem problemas, pelo que aparentava, cinco anos adicionais aos seus 15 anos verdadeiros.
Mas sua fragilidade, seu modo de falar e seus antecedentes podiam servir de advertência ao policial para tomar algum cuidado antes de recolhê-la a uma cela acanhada, suja e fedorenta, com 20 homens, e deixá-la aí por tanto tempo, sem se preocupar com o que acontecia. O delegado Celso Viana, supervisor da polícia em Abaetetuba, sabia bem quem era L. S. P., por ele atuada até então três vezes.
Na mais desastrosa de uma sucessão de frases infelizes de várias autoridades, o então delegado-geral da polícia civil, Raimundo Benassuly, sugeriu, em uma audiência na Câmara Federal, em Brasília, que L. S. P. aceitou ir para o catre superlotado e se manter entre os 20 presos, submetendo-se a prática sexual forçada e intensa ao longo dos 24 dias seguintes, por ser débil mental. Mal saiu de sua boca, a frase o condenou ao afastamento do cargo, consumado no dia seguinte, já em Belém, sob o disfarce de pedido voluntário de demissão.
O delegado ainda tentou consertar as coisas, mas, como geralmente acontece no atual governo, a emenda saiu pior do que o soneto. Disse que sua intenção não era culpar a menor pela violência que sofreu, apenas levantar a possibilidade de ela ter sido afetada mentalmente pelo excesso de violações que sofreu até o momento de ser presa.
Ora, se esse fato era do conhecimento dos policiais responsáveis pela delegacia de Abaetetuba e se a informação foi repassada ao delegado-geral, mesmo que apenas depois de formado o escândalo, era mais um motivo para Benassuly se colocar contra a omissão, conivência e incompetência dos seus subordinados – e não atenuar essas faltas funcionais.
A imensidão do problema só começou a se apresentar na sua dimensão real quando a denúncia chegou ao Conselho Tutelar de Abaetetuba, no dia 14 de novembro. O conselho ouviu imediatamente L. S. P.. Ela confirmou que foi obrigada a fazer sexo para receber comida dos detentos, sofreu espancamento, teve o corpo queimado, não deixavam que dormisse e no fim seu cabelo foi cortado a faca por um policial para que se parecesse ainda mais com um homem. Dois dias depois o conselho enviou o alerta à juíza da 3ª vara criminal do município e no dia 19 ao Ministério Público e ao Juizado da Infância e da Adolescência.
Quando, finalmente, a engrenagem institucional começou a se mover, libertando-se das amarras à inércia formal e rigidez burocrática, a polícia, que sabia o que fazia, tentou consertar o irremediável: forçou o pai biológico da menor a fornecer um atestado falso, com idade de 20 anos.
Mesmo sob ameaça, Aloísio da Silva Prestes resistiu e continuou a sustentar a verdade, em defesa da filha, que há alguns anos vive com a mãe e um padrasto (como a família divide um barraco com mais quatro filhos, L. S. P. saiu de casa e passou a viver pelas ruas). Sem sucesso no ardil, os policiais trataram de, no dia 17, retirar a menor da cadeia e colocá-la na beira do cais, de onde poderia seguir sua sina e sua “competência”, em novos programas na doca movimentada e, talvez, sumir, ou ter um sumiço.
No dia 18 o fato chegou à imprensa e foi escancarado. É certo que alguns veículos exageraram na dose e outros aproveitaram para alguns acertos de contas, principalmente de natureza política (em direção ao PT, que comanda a república, e ao Estado, que no Pará tem uma mulher no comando e outras nas instâncias supostamente competentes para tratar da questão). Mas nenhuma manipulação, por mais evidente, como a que O Liberal fez, diminuiria o escândalo geral diante de uma história tão escabrosa.
Com as informações circulando pelo mundo inteiro, cada burocrata tratou de dizer e tentar demonstrar que aquele circo dos horrores foi montado à revelia da sua exação e circunspecto cumprimento do dever funcional e legal. Todos estavam certos: as coisas é que deram errado.
A polícia, execrada e condenada na primeira hora, tratou de lembrar que comunicou a prisão (dois dias depois de efetuá-la) ao Ministério Público e à justiça e entregou a prisioneira ao Sistema Penal, responsável pela custódia, sempre alertando para os riscos a que ela estava exposta. Só não enfatizou que a iniciativa foi no dia 5 de novembro, duas semanas depois que a menor já era submetida diariamente a abusos e violências
O Ministério Público do Estado tratou de isentar-se de culpa: informou que vistoria as celas de 30 em 30 dias. Por infelicidade de L. S. P., o périplo ministerial ocorreu no dia 17 de outubro, quatro dias antes da sua prisão.
Chova ou faça sol, caia chuva de canivete, o MPE não sai da sua agenda, não improvisa. E assim, de azar em azar, a menor já não estava no covil quando o fiscal da lei voltou à sua ronda, no dia 19 de novembro. Quem estava irregularmente na fétida cadeia foi colocado na rua.
À Defensoria Pública do Estado também não pode ser imputada qualquer responsabilidade pelo lamentável fato. A atual direção do órgão triplicou seus quadros no município para atender os necessitados, algo sem paralelo na história da instituição.
Certamente os efeitos benéficos dessa salutar iniciativa só se farão sentir mais intensamente a partir de agora, o que talvez se explique pelo hábito que têm promotores, defensores e juízes de raramente morar na comarca da sua jurisdição, especialmente quando estão próximas a Belém, como é o caso de Abaetetuba. Atuava à moda parlamentar, somente três dias por semana, e se ausentam do domicílio legal a qualquer pretexto.
Naturalmente, todos têm razões a apresentar para essa prática nada edificante: não dispõem dos recursos necessários para um trabalho mais sistemático e frutuoso, não contam com instalações físicas adequadas, não têm o apoio institucional devido, etc.
É verdade: enquanto as sedes desses órgãos se esmeram e se ampliam, chegando às culminâncias da sofisticação, como no caso do Tribunal de Justiça do Estado, com seu oneroso palácio recém-adaptado, o interior não tem a mesma atenção. Ou então recebe uma prioridade típica do nosso mundo virtual: conectado à rede mundial de computadores, que lhe garante instantaneidade de comunicação, só está atualizado ao século XXI do computador para frente (e só pelo interior da máquina; da sala onde está a máquina para trás, é uma selvageria do século XIX, ou XVIII ou época mais remota ainda. Talvez, até, a idade da pedra. E esta realidade vivencial cotidiana assusta, inibe carreiras, esvazia virtudes.
Não é sem propósito que Abaetetuba passou a ser conhecida como a Medellin paraense. Sua posição estuarina, entre vários rios que drenam para o vasto Oceano Atlântico, a tornara, em tempos anteriores, uma subcapital do contrabando, na época em que Belém vivia isolada do restante do Brasil. Passou da sandália japonesa, do uísque e do perfume numa mão (e do café e do cacau na outra, a exportadora) para o cigarro e a cocaína.
Em certos circuitos, o dinheiro corria solto, tão fácil que um dos mais notórios traficantes chegou a construir, com seus próprios recursos, um estádio de futebol e o doou à comunidade. Quem vai ficar contra esse benfeitor, um autêntico godfather, o padrinho?
Mas as coisas foram se tornando mais complicadas quando heranças históricas, como o alto consumo de álcool (deixado pela destroçada cultura da cana-de-açucar, que deu fama à cachaça de Abaeté), se juntaram a práticas novas, como a cocaína, e foram atiçadas pelo incremento migratório desencadeado pelas indústrias de exportação vizinhas, que drenam muitas riquezas e deixam quase nada de reprodutivo. Os componentes de uma crise muito maior estavam em ação. Bastava circular pelas ruas da cidade para percebê-los, adquirindo intimidade com o drama.
Os moradores de Abaetetuba conhecem muito bem L. S. P. Provocados a se manifestar, desfiam o rosário de delinquências que ela cometia. Os policiais também não eram noviços nesse enredo, nem os promotores, defensores e magistrados. Diga-se, em abono ou em ônus do papel dos policiais, que eles são os agentes públicos em maior contato com a população.
Para o bem ou para o mal, não podem reivindicar inocência. Sabem o que fazem e são os que mais fazem. Já os outros servidores dessa estrutura só podem alegar primariedade porque se restringem à formalidade da sua missão, que cumprem para efeitos mais estatísticos e virtuais do que empenhados nos resultados concretos, na participação direta na realidade.
A juíza Clarice Maria de Andrade, a única das personagens principais que se manteve em silêncio diante do clamor público (referendada por uma manifestação corporativa da sua associação), manteve o flagrante e a prisão de L. S. P., sem fazer qualquer indagação mais substancial sobre o papel que lhe foi apresentado.
Como juiz não é obrigado a um contato pessoal com aqueles indivíduos que se escondem por trás de nomes próprios, não mandou chamar a presa nem perquiriu pela sua manutenção numa prisão que é conhecida de todos que vivem em Abaetetuba. E o crime era de tentativa de furto, que não chegou a se consumar. Nos quatro processos anteriores, presididos pela mesma magistrada, a menor foi liberada por falta de provas. Parecia ser esse o caso na nova prisão.
Todas as pessoas levadas às barras dos tribunais têm que ser identificadas individualmente. Não há réu anônimo. Seus dados básicos têm que constar da sua qualificação. Uma juíza do fórum criminal de Belém vai além: exige a apresentação dos presos antes de dar qualquer despacho no processo a que ele responde.
Muitos magistrados parecem seguir o procedimento teleológico (ou teratológico) de vários médicos, que despacham imediatamente seus pacientes para numerosos exames médicos antes de contemplá-los com algum interesse. E, às vezes, só o examinam depois do resultado dos exames, mais confiados nos números do que na pessoa.
Cada um cumpre seu estrito dever sem se importar com o problema em sua forma de carne e osso. Nenhum escândalo teria resultado da prisão da menor se ela, sem alternativa de escapar logo, como das outras vezes, não tivesse incumbido outro detento (seu igual, tão invisível quanto ela nesse mundo marginal que roda em paralelo ao mundo oficial) de ir dar notícias da sua situação “lá fora”.Ao contrário das outras três vezes, desde junho, em que foi presa e aceitou se sujeitar a tudo que lhe foi imposto, desta vez ela não ia se acomodar.
O Gulag só começou a se desfazer por iniciativa do Conselho Tutelar, o menos burocratizado, o menos oficial e o mais próximo da realidade dos elos dessa cadeia de instituições necrosadas por excesso de formalidade e burocracia. Ninguém viu antes por não querer ver, a pior das cegueiras, segundo a sabedoria popular. Nesse longo período de inação, seguida de uma sucessão de declarações infelizes, biografias e currículos em defesa da justiça e dos direitos humanos foram ao fogo.
De fato, não se pode jogar apenas sobre os ombros do governo de Ana Júlia Carepa culpa que é de muitos outros governos e da sociedade, com origem secular, nem restringir ao Pará uma bestialização que é nacional: na mesma época, vários presos praticaram violência sexual contra outros três presos na cadeia pública de Santa Rita de Caldas, em Minas Gerais, e ainda filmaram as cenas ultrajantes.
Mas podem-se renovar as críticas, já em tom de desalento, de que é merecedora a atual gestão pública, por não começar a mudar para valer esse estado de coisas, 11 meses após assumir a administração estadual com o compromisso da mudança. Por manter uma postura teórica de comando, seus técnicos e dirigentes permanecem distanciados da realidade, até sem intimidade com o meio que deviam liderar, como acontece no segmento da segurança pública.
De palavras, por mais indignadas e enfáticas que sejam, a sociedade já está farta. Para promessas, ainda que novas, não está mais receptiva. O prazo de carência já venceu e o governo do PT continua a ser o que era: uma promessa.
Esse estado de espírito se refletiu na nota oficial, sem assinatura, encimada por um título dado por quem parece estar na geral do estádio de futebol e não no campo onde os jogadores atuam: “governo do Pará repudia atentado à cidadania”. Quem repudia é a oposição, que não tem à mão os cordéis de ação do poder executivo. O governo age contra o atentado – aliás, cometido por seus servidores.
O governo grita para produzir efeito, produzindo espuma. A sociedade quer ação e resultados. O fosso entre as duas situações já é incomodamente largo demais. Ou se estreita, ou o governo cai no buraco, já sem pernas tão longas para manter-se equilibrado sobre o vácuo.
Talvez o “caso” da menor de Abaetetuba possa servir de ponto de inflexão nessa tendência ao desgaste, se de tantas promessas de providências resultarem mudanças para valer. Elas só terão efeito se forem corajosas, enfrentando de frente problemas como o da prostituição infantojuvenil de Abaetetuba.
A expressão simbólica desse problema é a danceteria onde, nos finais de semana, as jovens abaetetubenses se reúnem aos clientes para os programas nas barracas na beira do cais. Nome do dançará: Bico da Chaleira. A pressão na chaleira social está próxima de explodi-la. Convém não esperar mais.
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