Segunda-feira, 22 de março de 2010 - 19h49
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal
BELÉM, Pará — Como você reagiria ao chegar à Amazônia e receber um convite para comer uma costela assada de aviú? Se reagir com bom humor à “pegadinha”, é porque tem um conhecimento mais íntimo da região. O aviú é o mais minúsculo dos camarões, de uns três centímetros, que se come cozido. Cada garfada deve carregar mais de uma dezena deles. É saboroso, mas só aparece em dois rios amazônicos.
Um, é o Tapajós, em cujas margens foi fundada — há quase 350 anos — a terceira maior cidade do Pará, Santarém, que lidera a campanha para criar um novo Estado, desmembrado do atual (o segundo da federação, com tamanho equivalente ao da Colômbia), ela como sede.
O outro rio é o Tocantins, que é amazônico, mas não faz parte da bacia do rio Amazonas, a maior do planeta. É mezzo Planalto Central, mezzo Amazônia, com sua própria bacia (em parceria com o Araguaia, cada um deles com mais de dois mil quilômetros de extensão). Contribui com suas águas para a formação de um vasto estuário, no qual se localiza Belém, distante 180 quilômetros do Amazonas, o suficiente para receber pouca influência daquele que é chamado de rio-mar, por sua enormidade.
Churrasco de aviú para “especialistas em Amazônia”
Convidar para um churrasco de aviú tem sido meu teste para distinguir o “amazonólogo” de gabinete daquele que realmente trilha pela região, indo constatar com os próprios olhos seus fenômenos naturais e aprender sobre a sua história. É muito fácil assumir o título de especialista em Amazônia a distância. As técnicas que possibilitam o conhecimento indireto se sofisticaram muito. Pode-se acompanhar o que acontece na região todos os dias monitorando as imagens dos vários satélites que orbitam sobre a região.
À frente do monitor, a milhares de quilômetros de distância, alguém pode detectar uma queimada ou um desmatamento que passam despercebidos a um nativo vizinho do local. A bibliografia amazônica já reúne milhares e milhares de títulos. Mas alguém, com todos esses recursos, que podem dar-lhe um volume de conhecimentos capaz de impressionar qualquer desavisado, pode cair como um “pato” na “pegadinha” do aviú. Alguns já caíram, e eram bã-bã-bãs, bwanas mesmo.
Mistério que a fotografia não revela
Padre Antônio Vieira dizia que nas proximidades de Belém havia tantos índios que, se se atirasse uma flecha para o ar, ela não cairia ao solo. Engataria na cabeça de algum índio, tantos eles eram. Quinhentos anos depois, paraenses marcham no centro de Belém para reivindicar humanismo na política mental / M.CRUZ |
Brincadeira de mau gosto? Não. Quando a formulei, me serviu de mensagem para aqueles que chegam a certezas sobre a Amazônia por processo dedutivo, por derivação ou mesmo por gravidade (já que se acham degraus acima do morador da região). Até meados da década de 1980 a Fundação Getúlio Vargas deduzia a parte da Amazônia nas contas nacionais por resíduo. Apurava o que era das demais regiões e o que sobrasse era o Norte, um detalhe, apesar de corresponder a dois terços do território nacional e não ser exatamente um deserto demográfico (e muito menos uma terra ignota, sem história).
É impossível descobrir o mistério amazônico através de fotografia, imagem de satélite ou descrição por escrito de terceiros. Ela não é apenas parte do mundo tropical, membro da confraria do Terceiro Mundo ou paragem colonial. Infelizmente, é tudo isso, mas tem uma natureza diferente, específica e única. Ela é o produto da combinação de água e floresta no mais fechado dos circuitos da natureza no planeta Terra. É um organismo harmônico, em equilíbrio. Ou era, até que os homens foram ousando cada vez mais na quebra desse circuito fechado.
Ocupação humana
O homem não é um elemento perturbador por si mesmo. O dano que causa resulta de incompreensão sobre o meio físico no qual atua. Devemos isso a uma americana, Anna Roosevelt, bisneta do legendário presidente americano Theodore Roosevelt (comandante de uma expedição tão incrível feita ao atual Estado de Rondônia que seu nome passou a batizar o rio pelo qual navegou, sofreu e quase foi imolado, junto com um dos maiores heróis brasileiros, o cuiabano Cândido Rondon, marechal original, por fazer a paz, não a guerra).
Por ela, ficamos sabendo que a aparição humana na Amazônia tem de 10 mil a 12 mil anos. E que esses primitivos habitantes começaram a manejar cerâmica antes dos andinos, ou ao mesmo tempo. Logo, não são derivados deles. Deram início a uma nova etapa da história humana nessas paragens amazônicas, dotada de autonomia e, depois, de identidade.
Essa população original, com milhares de anos de adaptação ao espaço natural, somava pela casa dos milhões quando os europeus chegaram, apenas meio milênio atrás.
Sua participação, a partir desse momento, foi avaliada através das tabelas das matanças ou das “reduções” culturais, que ocultavam a destruição do universo do nativo. Só agora começa a avaliação do que fizeram. Tão “avançados”, os descendentes dos colonizadores europeus levaram séculos para se fazer uma pergunta primal sobre a atividade desenvolvida por essa gente, que parecia nenhuma, nula.
Trabalhadores selecionam camarões no Mercado Ver-O-Peso, em Belém: rotina diária de centenas de homens e mulheres empregados em bancas internas e externas de um dos maiores centros abastecedores da capital paraense. Há séculos, o homem amazônico é dono do seu espaço natural /M.CRUZ |
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