Segunda-feira, 23 de maio de 2011 - 16h34
BELÉM, Pará – O Trem Itabirano, jornal alternativo editado por Marcos Caldeira Mendonça na terra natal de Carlos Drummond de Andrade entrevistou o jornalista Lúcio Flávio Pinto, editor do Jornal Pessoal em sua edição n º 67 .Lúcio Flávio comemorou na ocasião os 45 anos da publicação da sua primeira matéria como jornalista profissional, na edição de A Província do Pará de 6 de maio de 1966. Era sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. Saiu inteira na primeira página do extinto diário de Assis Chateaubriand no Pará. “Este jornalista é uma encrenca danada para os pulhas do norte: Lúcio Flávio Pinto” foi o título da entrevista de Mendonça. A seguir:
No norte do Brasil, empresários mal-intencionados, políticos corruptos, devastadores da floresta amazônica e outros pulhas têm no jornalista Lúcio Flávio Pinto um adversário firme, sempre disposto a encará-los na arena da informação. Há 23 anos, ele edita em Belém, capital do Pará, o Jornal Pessoal, que é o que todo jornal digno desse substantivo deve ser: um combatente tenaz contra o atraso.
Quinzenal, doze páginas em tamanho ofício, dois mil exemplares por edição, sem anúncio e assinatura, mantido apenas com a venda em bancas e livrarias, por três reais. Nanico só no formato, é uma fonte confiável de informações, o que no Brasil é mais raro do que o canto do uirapuru.
Como publicar verdades não é fácil, Lúcio Flávio Pinto é mais perseguido por potentados locais do que o galo-da-serra por cinegrafistas do Globo Repórter. Responde a dezenove processos movidos por diretores das Organizações Romulo Maiorana, maior grupo de comunicação do norte brasileiro, donos da TV Liberal, filiada à Rede Globo, do jornal O Liberal e de emissoras de rádio. Em 2005, foi agredido fisicamente por um deles.
O motivo, diz o jornalista, é a publicação no Jornal Pessoal de verdades incômodas a membros das Organizações Maiorana, como o envolvimento de Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana em fraude para receber dinheiro de incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). “Posso provar – como tenho provado em juízo – tudo o que publico. Nunca fui desmentido sobre fatos. O que eles querem é me amordaçar, em plena democracia.”
O jornalista fala sobre o Jornal Pessoal, sobre a peleja contra os Maiorana, sobre a operação da empresa Vale no Pará e sobre o ofício de informar. Todo jornalista, diz, tem o dever de ser auditor do cidadão contra o poder.
O poeta inglês Kingsley Amis dizia não fazer muito sentido escrever se não for para incomodar alguém. No jornalismo, é possível comunicar algo que valha a pena ler ou ouvir sem mexer em problemas?
Lúcio Flávio Pinto – Bertolt Brecht dizia que o homem feliz é aquele que ainda não recebeu a última notícia, e que a ingenuidade é uma prova de insensibilidade. Ele viveu em tempos sombrios, num tempo de guerra. Nós, aparentemente, vivemos num tempo muito melhor do que aquele que inspirou seus melhores e mais tristes versos. No entanto, é uma era de conformismo, de egoísmos, de brutalidade, de paradoxos, de abuso de poder. Talvez estejamos preparando um tempo pior do que aquele do “pintor de paredes”, conforme Brecht tratava o bestial Adolfo Hitler. Mas sempre há tempo para flor, para sorrisos, para pureza. Eu gostaria de elogiar mais e criticar menos. Mas assim trairia o principal compromisso do jornalismo: ser o auditor do cidadão contra o poder. Millôr Fernandes já disse: “Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Não é exatamente isso, mas é quase isso.
Qual sua opinião sobre aqueles jornalistas que abdicam da altiva função de publicar verdades, podendo contribuir na melhoria do País, para simplesmente bajular gente com poder?
Há lugar no mercado para todas as opções. Essa não é a minha. Não invejo os que obtiveram sucesso e dinheiro cortejando os poderosos. Em mim, há uma compulsão para desafiá-los ao menos num terreno: o das informações. Se manejam o interesse público ou utilizam recursos públicos, quero que prestem contas dos seus atos. Um amigo e, ao mesmo tempo, objeto das minhas críticas, dizia que preferia ser criticado mesmo. E explicava por quê: depois de uma linha de elogio vem a vírgula e a partir daí é só crítica, dizia, bem-humorado. Permanecemos amigos e adversários até ele morrer. Um caso exemplar, mas raro.
O Jornal Pessoal não publica anúncio, se mantém graças à venda em bancas e livrarias. É impossível conciliar anúncios com bom jornalismo?
É possível, mas é preciso que a empresa jornalística tenha estrutura para não criar dependência de poucos grandes anunciantes, o maior dos quais, no Brasil, costuma ser o governo. Tinha que viver só de muitos pequenos anunciantes, o que hoje é muito difícil e improvável. Depois de 21 anos com um pé na grande imprensa e outro na imprensa alternativa, decidi colocar o corpo inteiro num projeto jornalístico de autonomia radical. Resolvi que não teria anúncio algum para não criar relação sequer de amizade ou sentimental e poder publicar todos os fatos relevantes que apurasse. Para isso, meu jornal teria que ser o mais barato do mundo, com uma única pessoa a fazê-lo, mais um irmão, responsável por ilustrar e diagramar o jornal, sem cor, em formato pequeno, sem assinatura, exceto durante o período em que usei meu Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, depois de 19 anos no Estadão, para financiá-lo. E assim o Jornal Pessoal se tornou a publicação da imprensa alternativa brasileira de maior duração.
O senhor trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo. A chamada grande imprensa é mesmo uma grande imprensa?
Na maioria das vezes, imprensa grande. Mesmo o Estadão já teve seus momentos de grande imprensa, com Cláudio Abramo sob Júlio de Mesquita Filho e durante a ditadura, sob o Júlio Neto. Hoje, o jornal é útil, deve-se lê-lo, mas ele perdeu em tutano, em gravitar em torno dos fatos, mesmo os que se chocam com o que a “casa” diz em sua página de editoriais. Mesmo assim, é um dos melhores jornais brasileiros, talvez o melhor no momento, mas degraus abaixo do que era o padrão da grande imprensa na época do regime militar. Saía menos do que devia, mas forçava-se até o limite da rebelião para que saísse muita coisa.
O senhor venceu o Prêmio Esso de Jornalismo quatro vezes, entre outras honrarias. Mais importante, é um jornalista com credibilidade, coragem e competência. Fale-nos sobre isto: o prazer de ser respeitado em sua profissão.
O maior elogio que recebi me foi mandado por Delfim Neto quando era o todo-poderoso ministro do governo militar. Uma noite Roberto Appy, da seção econômica do jornal, chegou, se sentou à mesa onde nos mantínhamos por algum tempo depois de fechar a edição do dia e disse que Delfim, lendo uma matéria sobre a manipulação do índice da inflação de 1972, que eu pautara e coordenara, comentara: “Já enfrentamos repórter, editor e dono de jornal. Agora é a vez do pauteiro”. Ouvi e reagi: era o melhor elogio que eu podia receber. Appy se foi, mas antes deu um tapinha no meu ombro, como aprovando minha atitude. Nada é melhor para um jornalista do que ser respeitado e, se possível, temido pelos poderosos. O Jornal Pessoal é uma publicação rústica, primária. Mas está no clipping dos poderosos que agem na Amazônia. E sob sua mira, quando o caso. Se eu errar, vêm em cima.
Se o jornalismo brasileiro fosse melhor, o Brasil estaria melhor?
Sem dúvida. Há um componente pedagógico no jornalismo, que devia ser considerado tão importante quanto vender mais, conseguir mais anúncios, impressionar. Quando um tema árido é o mais importante da quinzena, eu não tenho dúvida em colocá-lo na capa, mesmo que o preço a pagar seja vender menos, ou dar grande espaço a uma questão econômica, tecnológica, científica. Se o leitor não se interessar ou achar chata a matéria, é problema dele. Fiz a minha parte: alertá-lo para a relevância ou gravidade do assunto.
A empresa Vale, que extrai minério em Itabira desde 1942, lucra bilhões de reais anualmente na cidade e causa um gigantesco impacto ambiental: paisagem brutalmente desfigurada, assoreamento de córregos, poluição do ar, casas trincadas pela detonação nas minas, comprometimento no abastecimento futuro de água, entre outros problemas. O que a empresa retorna a Itabira, diante do que lucra na cidade, é faísca de migalha. Soma-se a isso um governo municipal danado de incompetente, obscurantista, que administra mal, muito mal, o dinheiro público.
A Vale também retira minério no Pará. Como vê a operação da empresa em seu estado?
Carlos Drummond de Andrade lamentou que, com a lavra no Pico do Cauê, Itabira se tornara um retrato dolorido na parede. Se ele viesse a Carajás, no sul do Pará, teria um choque maior ainda. É a melhor jazida de minério de ferro do mundo. Quando começou a ser lavrada, em 1984, devia durar pelo menos 400 anos. Hoje, a previsão é de menos de um século. No ano passado dela saíram 100 milhões de toneladas. É o equivalente à produção americana do pós-guerra. Para que essa hemorragia de riqueza natural se mantenha, o maior trem de carga em operação no mundo faz nove viagens diárias entre a mina e o porto, em São Luís do Maranhão. O Pará se tornou o quinto maior exportador do Brasil e o segundo estado que mais fornece divisas ao país, abaixo apenas de Minas Gerais. Mas é o 16º em desenvolvimento humano, o 21º em PIB per capita e o quarto em violência, embora tenha a nona população do país. O modelo colonial do qual a Vale é o expoente responde por essa situação absurda. É um crescimento a rabo de cavalo: quanto mais cresce, mais vai para baixo.
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