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Lúcio Flávio Pinto

O monstro estatal - Por Lúcio Flávio Pinto



A ministra responsável pelos direitos humanos na administração pública federal, Luislinda Valois, pode ter sido a autora de um dos documentos mais importantes para revelar aos pósteros (ou aos que vierem depois de nós, como no famoso poema de Bertolt Brecht), o que era e foi o Brasil destes nossos tempos difíceis, embora não exatamente de guerra, como nos tempos do nazismo alemão exorcizado pelo pobre B. B (o que dá uma medida da nossa mediocridade como aspiração a uma nova civilização).

Luislinda escreveu nada menos que 207 páginas para defender, junto aos escaninhos de uma das piores burocracias do mundo, o seu direito de receber dois contracheques: o de ministra (30,9 mil reais) e o de desembargadora aposentada pela justiça da Bahia (R$ 30,5 mil). Se o seu pleito fosse atendido, seu salário passaria de R$ 33,7 mil para R$ 61,4 mil.

A lei, que constituiu – e ainda deveria ser – a matéria prima da ministra, que é filiada ao PSDB, partido criado pela elite paulista para reformar os maus hábitos e costumes da política brasileira, desmembrando-se, para isso, da sua origem, no fisiológico PMDB, não admite dúvida: nenhum servidor público, seja de que órgão for, pode receber além do teto de R$ 33.700.

O parâmetro é o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o estágio superior do poder judiciário, ao qual, na sua terra, Luislinda declara que prestou serviços por meio século de dedicação e trabalho. Tão denodados que no seu histórico documento, um dos mais cínicos de todos os tempos, mas com valor documental por sua franqueza e amoralidade, ela garante que que “se assemelha ao trabalho escravo” forçá-la a viver com os míseros R$ 33,7 mil que lhe restam após o redutor constitucional, a guilhotina que elimina tudo além do máximo legal.

A ministra listou as despesas que passou a assumir tanto para se instalar em Brasília como para se afastar de Salvador, onde gozava as delícias de andar pelas ruas de sandálias de borracha enfiadas nos dedos do pé e uma roupa qualquer jogada sobre o seu corpo. Enquanto na capital federal tem que andar “nos trinques”, produzida com esmero para causar boa impressão aos cidadãos da república.

Claro: no cartapácio que produziu se esqueceu de citar o cartão corporativo, a moradia funcional, o carro oficial, o jato da FAB e outras mordomias, das quais não abriu mão, no usufruto das quais pode ter se esquecido de se manifestar contra a portaria editada pelo governo para dificultar o combate ao trabalho escravo – este, sim, uma vergonha que enodoa o Brasil junto à comunidade internacional. Ainda mais porque as vítimas desse autêntico crime de lesa-humanidade costumam ser os pobres, pardos e pretos, como a própria Luislinda (uma felicidade na escolha do nome, uma ironia no seu exercício).

Antes de cometer a insanidade, materializada para sempre nas 207 páginas, a ministra devia ter refletido sobre alguns números da situação que mais degrada os brasileiros: a profunda desigualdade social. Em 2002 os gastos com pessoal (da União, Estados e municípios), que somam 13,4 milhões de pessoas (6,44% da população brasileira), sendo 2,2 milhões federais, 4,7 milhões estaduais e 6,5 milhões de municipais, equivaleram a 13,35% do Produto Interno Bruto.

No ano passado, a situação piorou, apesar de toda a gritaria indistinta (liderada pelos próprios beneficiários da distorção): a parte desses trabalhadores de primeira classe (autêntica nomenklatura, consolidada pelos governos do PT), chegou a 15,27% do PIB. Crescimento real de 14,38%, absorvendo 46,75% da pesada carga tributária de 2015, que foi de 32,66% dos rendimentos dos cidadãos. Cangalha que pesou ainda mais porque nesse mesmo período o crescimento real do PIB foi de 34,70%.

Assim, os barnabés brasileiros tiveram um ganho real acima da inflação de 54,07% entre 2002 e 2016.

Esse fator pesa – e muito – no crescimento astronômico dos gastos públicos, incluindo, é claro, o déficit da previdência, já que o salário mínimo de um funcionário estatal é, em média, três vezes maior do que o de pobres mortais (frase que é mais do que uma retórica, usada nos corredores oficiais), como os que ainda são submetidos a trabalho escravo de verdade (sanguinário e cruel) muito distante do gabinete de uma ministra, insensata não como individualidade, mas como a exata tradução dessa anomalia incrustada na capital federal, nessa “nova classe especial”.

O cidadão de segunda classe, além de suportar o peso dessa burocracia mastodôntica, ainda é humilhado pela retórica repetida ao longo desse tempo, pagando a conta de uma realidade mistificada e falseada tanto pelos apologistas do Estado mínimo, que gorjeiam sua retórica tucana, como pela indigência dos novos populistas de esquerda, que querem esse paquiderme para montá-lo e ficarem com seus privilégios odiosos e ultrajantes.

Mais corporativismo e mendicância intelectual de um lado e mais tratamento especial para os escolhidos de outro, cinco reformas da previdência depois, desde a era FHC até a do subproduto do PT, Michel Temer, e nada menos do que 25 Refis, que postergam o pagamento e baixam vergonhosamente as dívidas dos plutocratas nacionais junto a órgãos públicos, implacáveis com os assalariados.

Espero que alguma instituição séria exija uma cópia da íntegra do petitório da ministra e distribua cópias aos milhares para todo país (me coloco como primeiro de uma fila que espero venha a ser longa). Talvez assim Luislinda Valois finalmente tome a atitude mais coerente com seu cometimento, que não se reduz a retirar o pedido, o que já fez, mas a pedir demissão e voltar ao seu farniente bem remunerado em Salvador, na Bahia.

Talvez até se consiga munição e disposição para atacar este monstro secular que corrói o Brasil: o patrimonialismo estatal.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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