Quinta-feira, 22 de novembro de 2012 - 10h46
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal
Uma aluna do curso de comunicação social da Universidade da Amazônia (Unama) me fez esta pergunta, pela qual tanto esperava, durante uma palestra. Ela se referia a uma declaração anterior que fiz. Lamentei a ausência de repórteres na linha de frente dos acontecimentos, enquanto a retaguarda da imprensa está congestionada.
Antes da obrigatoriedade do diploma do curso superior de comunicação social para o exercício da profissão de jornalista, qualquer candidato a um posto na redação era mandado primeiro para trabalhar na cobertura de polícia. Era uma iniciativa sábia.
O “foca” sofria o impacto dos fatos que passava a cobrir, como assaltos ou assassinatos, mas o contato direto com as pessoas desenvolvia seu senso de observação, a capacidade de apuração de informações, a ousadia, a criatividade e o mais importante: a identificação do que constituía a matéria prima do jornalismo. Dentre tantos dados que anotava, precisava identificar aqueles que integrariam a notícia.
A cabeça de um jornalista, como de outros profissionais que lidam com a dinâmica dos acontecimentos, funciona em duplo movimento. Enquanto capta informações precisa ordená-las, selecionando o que merece destaque e organizando o futuro texto que ainda irá escrever.
Um bom repórter chega à redação com sua matéria já concebida. Ao começar a redigir, seus desafios são abrir bem o texto, com dois ou três parágrafos fortes, que atraiam e mantenham a atenção do leitor, e um final que deixe um gosto de quero mais, de disposição do leitor para o que virá no dia seguinte, na suíte da matéria inaugural.
Contato indireto
O acerto desse procedimento tinha um inconveniente: o jornalista passava a confiar apenas nos instintos, no seu faro para as informações novas, importantes, relevantes, curiosas ou interessantes. A história começava e terminava todos os dias sem que ele aprimorasse o entendimento dos fatos aparentemente isolados, singulares, sem qualquer encadeamento.
Um repórter à antiga tem a malícia necessária, depois de anos a lidar com todo tipo de gente, nas mais imprevisíveis situações. Ele conhece traficantes de drogas e as maiores autoridades públicas, pessoas dignas e canalhas, tem fontes em todos os lugares e já passou por boa parte deles. Mas, a partir de certo momento da sua carreira, começava a se embotar, se repetir, perdia a sensibilidade para as mudanças e, sobretudo, não ia além do que via.
Para evitar essas deficiências era preciso se reciclar. Aprender, refazer suas formas de percepção. Na velha redação havia poucos profissionais dispostos a aceitar esse desafio da sistematização do conhecimento, do aprendizado daquilo que constitui o acervo do pensamento humano, por meio da reflexão que as melhores cabeças fizeram e nos legaram através dos meios de transmissão, em especial o livro, e do melhor local para absorvê-las (ao menos em tese), as universidades.
Apesar dessa limitação estrutural, digamos assim, havia grandes jornalistas. A razão estava num hábito arraigado desses profissionais: ler muito, ter uma curiosidade inesgotável. Por seus dons naturais e pelo exercício da leitura, eles chegaram às bordas da literatura – e vários deles cruzaram essa fronteira demarcadora e intransponível para a maior parte dos jornalistas. É por isso que, mesmo lidando com a elaboração de textos diariamente, eles não são escritores e, a rigor, nem intelectuais. São os profissionais dos faits-divers, de um brilho efêmero, que raramente sobrevive à circulação da publicação onde escrevem.
A formação acadêmica imposta a partir da norma legal estabelecida, através do ditatorial decreto-lei, pela Junta Militar, em 1969, abriu as portas do saber organizado e sistematizado para os novos jornalistas. Mas os confinou em cubículos e os despejou para a cozinha da imprensa. É o lugar no qual manejam seus computadores, têm contato indireto com as fontes e lidam com realidades virtuais. É frequente que nem conheçam suas fontes ou jamais presenciem ou testemunhem sobre os fatos aos quais se reportam.
Imprensa encolhida
O jornalismo perdeu vida, sangue, nervos e a sua maior significação. Não é esperado e nem mesmo desejado que o jornalismo ocupe um lugar melhor preenchido pela literatura, a sociologia, a psicologia ou a ciência política. É lastimável, entretanto, que renuncie ao seu lugar próprio e justo de jornalismo. Isso ocorre quando os repórteres deixam de estar ao lado dos episódios relevantes do cotidiano, dos imprevistos do dia a dia, dos acontecimentos mais significativos.
Ao invés de serem testemunhas e olheiros da roda concreta da história, são porta-vozes de personagens, repetidores de conhecimentos que recebem prontos e acabados, burocratas da compilação de dados. Vão se tornando cada vez mais estáticos, distanciados da dinâmica social, atados às pautas dos seus chefes.
Essa deficiência tem uma ênfase ainda mais danosa na Amazônia. Sua condição de fronteira resulta em novos acontecimentos permanentemente, mudanças constantes, dispersão e deslocamento de atividades e pessoas. Como as empresas jornalísticas reduziram ao mínimo seu investimento em viagens, que poderiam levar seus repórteres aos locais onde realmente a história pulsa e acontece, o resultado é esse círculo vicioso em torno das mesmas informações, da padronização da cobertura jornalística, da quadratura do círculo.
Os novos donos da Amazônia querem continuar a explorá-la da forma vergonhosa como se têm conduzido. Essa imprensa encolhida, retraída ou acovardada lhes facilita essa missão colonial.
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