Quinta-feira, 17 de março de 2011 - 15h18
Laudenice Cantalistade Paiva, 37 anos, natural de Prainha, no Pará: agredida por Amazonino Mendes /BLOG MANUEL DUTRA |
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal
BELÉM, Pará – Voltou a ser moda falar mal de Carlos Lacerda. É o satanás da esquerda, o político reacionário, capaz das maiores vilanias, o matador de presidentes, o golpista. Lacerda foi um pouco de tudo isso. Mas também foi muito mais. Tinha carisma, idéias na cabeça, audácia e coragem pessoal. Os que hoje lhe atiram pedras, como ontem, costumam manter a devida distância. Não era fácil enfrentar pessoalmente o “corvo”.
Um dos mais proveitosos e deliciosos depoimentos já prestados por um político no Brasil é a longuíssima entrevista que ele concedeu a repórteres do Jornal da Tarde (o vespertino de O Estado de S. Paulo, sob o comando de Ruy Mesquita, o mais lacerdista da família) e publicada pela Editora Nova Fronteira, do próprio Lacerda (Depoimento, 3ª edição, 1987, 493 páginas).
É difícil manter os estereótipos armados contra ele depois dessa leitura. Mas principalmente depois de ver a foto em que Lacerda aparece cercado por todos os lados por presidiários rebelados na penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro. O então governador da Guanabara não mandou ninguém nem se cercou de seguranças. Debelou a rebelião na conversa, olhando os presos diretamente nos olhos.
O polêmico Carlos Lacerda, deputado e governador da ex-Guanabara, foi o maior líder da União Democrática Nacional (UDN) /AE |
Desastre
Qual político faria isso hoje, paparicado e guiado por legiões de assessores e marqueteiros? Antes de qualquer movimento, os políticos profissionais dos nossos dias consultam pesquisas, estudos e conselhos ao pé de ouvido. Não há mais espontaneidade e quando ela emerge por cima de todos os controles, é um desastre.
Como a do prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, mandando para o quinto dos infernos a moradora recalcitrante de uma área de risco da capital amazonense, ameaçada de ruir.A mulher tentava argumentar com suas condicionantes e misérias para não sair do local. Ao invés de continuar o diálogo e oferecer-lhe alguma coisa real para começar nova vida, o alcaide, irritado, explodiu: “Então morra, morra”.
“Então tá explicado”
Ao saber que Laudenice Paiva, separada, desempregada, com três filhos para criar, morando em ocupação irregular, era paraense, Amazonino, filho de pai paraense, terminou de entornar o caldo da maledicência: “Então está explicado”.
Ainda não. O Pará sempre foi mais local de atração, destino de imigrantes. Nos últimos anos assumiu um novo papel, o de local de saída, de fuga da população, sobretudo a do oeste do Estado, mais ligada atualmente a Manaus do que a Belém. Um dos mais novos bairros da capital manauara tem 80% de paraenses, em sua grande maioria santarenos. Eles agora experimentam na pele o que muitos imigrantes sofriam (ou ainda sofrem) no Pará.
Falta grandeza e sensibilidade aos políticos nos nossos dias. Amazonino é exemplo disso /BLOG DO PANUNZIO |
A discriminação aos paraenses no Amazonas (e em toda a Amazônia Ocidental) tem causas históricas, a partir da função sub-colonial de Belém durante a exploração da borracha. Um pouco do sangue espalhado pelos altos rios na busca do látex ficava nos bancos e casas aviadoras da rua 15 de Novembro, que costumava ser implacável com os devedores, cumprindo com rigor as ordens superiores. Hoje a rivalidade virou misto de ressentimento e raiva pela competição.
Oratório e raciocínio
A atitude do prefeito, porém, não tem origem tão profunda. Ela traduz o cinismo dos políticos profissionais ao lidar com o cidadão fora da época de colheita de votos. É um desprezo que parecia só existir na recriação literária. Quando se via Chico Anysio na pele de Justo Veríssimo, sempre desejoso de ver o povo explodir, dava-se de troco o exagero. Hoje, é uma pálida reprodução da realidade de Amazoninos et caterva.
Falta grandeza e sensibilidade aos políticos nos nossos dias. O direitista Lacerda foi à massa de presidiários enfurecidos bancado apenas por sua oratória e raciocínio. O governador Simão Jatene podia ter pegado um avião e ido a Manaus buscar sua conterrânea desfavorecida e trazê-la de volta à sua terra, oferecendo-lhe algo melhor do que a sentença de morte do prefeito de Manaus. Mas este tipo de político está fora de cogitação. Só existe na memória de quem ainda a cultiva, ainda que erroneamente.
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