Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Lúcio Flávio Pinto

Sertão cresceu, Amazônia encolheu: destruição prevista 45 anos atrás


Sertão cresceu, Amazônia encolheu: destruição prevista 45 anos atrás - Gente de Opinião

Levantamentos feitos com imagens de satélites revelaram, no ano passado, que da metade do Pará para o sul, até o norte de Mato Grosso, a floresta amazônica está sendo substituída por uma savana. Em alguns trechos, a hileia já desapareceu por completo. A estiagem se alonga, as temperaturas sobem e as chuvas se tornam irregulares. Mais de 30% de 2 milhões de quilômetros quadrados da parte leste da região foram desmatados. A transformação se tornou irreversível. O sertão cresceu, a Amazônia encolheu.

Esse incrível processo de destruição da natureza já estava em andamento, mas talvez pudesse ser contido, se o investimento em conhecimento científico pudesse ser superior ao apoio a atividades produtivas de agressão às condições naturais da Amazônia. O artigo que reproduzo a seguir, publicado em 1977 (há 45 anos, portanto), reflete esse momento.

Virou ladainha do catecismo dogmático repetir que os projetos agropecuários estão se instalando em áreas de cerrado, cerradão e mata fina. A Sudam (Superintendência do Plano de Desenvolvimento da Amazônia) criou esse refrão há uns três anos, no momento em que mais intensas eram as críticas – algumas feitas pelos seus próprios técnicos, mais afeitos à madeira do que à carne de boi – atiradas contra a tradicional forma de instalação de fazendas no sul do Pará e norte de Mato Grosso.

Até 1974, esse erro era admitido. Mas ele era justificado com o argumento – irrefutável em termos estritamente econômicos – de que essa área era a mais adequada por estar mais próxima dos mercados da região Centro-Sul, a única que interessa. Mas a partir do momento em que se descobriu, ou foi lembrada, a existência de uma mata de transição entre a hileia propriamente dita – cartão postal e habeas corpus para muito erro de geografia face à Amazônia – e o cerrado do Centro-Oeste, então o erro sofreu sofisticado tratamento ideológico.

Os técnicos passaram a dizer que as perdas causadas para a formação de pastos que não são de campos naturais seriam muito menores nessa faixa do que em qualquer outra da região amazônica. O cerrado, o cerradão e a mata fina ofereciam muito menos volume de madeira para as orgias pirotécnicas que se cometem nessas áreas de pecuária.

Sua substituição por pastos seria não apenas justificável economicamente como até defensável em termos ecológicos, se aceitas certas teses exóticas sobre a vantagem da cobertura do solo por capim e gramíneas. Mesmo que a Sudam não conseguisse (como até agora não conseguiu, ainda à espera de um controle com imagens de satélite, eternamente adiado) impor a utilização da floresta derrubada, o fogo não seria tão predatório porque não queimaria tanta madeira.

O argumento é infalível se o debate se o debate se exercita em frente a mapas e publicações técnicas. Torna-se discutível, porém, depois de uma viagem pela própria região teorizada. Talvez houvesse algum sentido para essa tese se ela estivesse restrita à dimensão florestal. Os técnicos teriam decidido destinar o sul do Pará à pecuária por achar que ali a floresta é mais pobre.

Sabemos que não há justeza nessa proposição, que esconde um elemento fundamental: a densidade de madeira por metro cúbico certamente é menor do que em outras partes da bacia amazônica. Em compensação, é aí que existe uma das maiores concentrações de mogno do país, além de algumas outras madeiras de lei.

Quem percorrer atentamente o município de Conceição do Araguaia verá que a extração e o beneficiamento (primário) da madeira está se transformando na principal atividade econômica da região, superior à pecuária. Há quem assegure que a extração foi reduzida em virtude da limitação ao abate de árvores. Mas se isso é verdadeiro, resta constatar que os estoques de madeira eram tão grandes que podem ser usados durante muitos meses sem afetar a produtividade das serrarias. Elas continuam a funcionar a pleno vapor. E se multiplicando.

Os técnicos que erigiram em verdade o catecismo cerrado-cerradão-mata- fina teorizam provavelmente em um avião, sobrevoando áreas vistas a olho nu: perceberam a copa das árvores, mas não o solo no qual se assentam. Descessem ao chão e teriam descoberto o absurdo de recomendar a instalação de fazendas de gado em boa parte das áreas a sul e sudeste do Pará, Trata-se, em boa parte, de um solo arenoso, com incrustações de pedra. Sugere a riqueza mineral do subsolo, mas, entregue aos pastos pobres, revela a antevisão da destruição que se está provocando.

A leviandade de certas formulações teóricas e a displicência na aplicação das normas administrativas têm contribuído muito para essa devastação. Em 30 anos, a Amazônia pode não ter se transformado em um deserto vermelho, como profetizado por Robert Goodland e Howard Irvin, mas Conceição do Araguaia está bem próxima dessa condição.

A instalação, subsidiada com dinheiro público, de fazendas em muitas áreas do município é absurda. Não são intransigentes críticos do modelo Sudam os que constatam esse absurdo: donos dessas fazendas se arrependem das opções que fizeram. Pagaram um preço por esse erro. Mas os incentivos fiscais concedidos pela Sudam nos tornam sócios desse prejuízo.

No verão é cada vez mais problemático o abastecimento de água em vários trechos do município. Os pecuaristas já chegam às suas áreas preocupados em perfurar poços artesianos profundos, preocupação risível alguns anos atrás. Recursos engenhosos adotados em certas fazendas são insuficientes para combater as pragas que proliferam nos pastos – e alguns apelam para perigosos produtos químicos, bumerangues ameaçando o futuro.

A realidade desastrosa da Zona Bragantina, mais próxima a Belém, e a ameaça iminente em Paragominas, onde se diz que há um leilão de fazendas incapazes de estimular arrematantes, não parecem ter criado a sensibilidade necessária para com Conceição do Araguaia. Ao contrário, se instalou como norma o fraseado vazio, que, para mentes críticas, vem justificando ou escondendo a grande destruição.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Albrás é a maior consumidora de energia elétrica do País

Albrás é a maior consumidora de energia elétrica do País

A Albras, a fábrica de alumínio da multinacional norueguesa Norsk Hydro, instalada em Barcarena, é a maior consumidora de energia do Brasil. Sua carga

O enclave de Ludwig na Amazônia no tempo da ditadura

O enclave de Ludwig na Amazônia no tempo da ditadura

Lendo o seu artigo Carajás:  enclave no Pará, me veio em mente uma experiência que fiz com a Jari, quando trabalhava como economista, no fim dos anos

Por que não proteger as castanheiras?

Por que não proteger as castanheiras?

A PA-230, rodovia estadual paraense que liga os municípios de Uruará, na Transamazônica, a Santarém, situada no local de convergência do rio Tapajós c

Amazônia na pauta do mundo

Amazônia na pauta do mundo

Publico a seguir a entrevista que Edyr Augusto Proença (foto) concedeu à revista digital Amazônia Latitude, iniciando uma série de entrevistas com esc

Gente de Opinião Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)