Quarta-feira, 29 de setembro de 2010 - 20h19
Área desmatada em Paragominas, onde a Fazenda Mexicana I detinha 2,9 mil hectares /NELSON MEIRA |
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Éditor do Jornal Pessoal
BELÉM, Pará – No mês passado, José Vitório Depra pediu à juíza agrária de Castanhal, Roberta Guterres Caracas, o desbloqueio da matrícula imobiliária da sua fazenda Mexicana I, em Paragominas, com área de 2.928 hectares. A juíza indeferiu o pedido, baseando-se em determinação do ministro Gilson Dip, Corregedor Nacional de Justiça. Através de provimento, ele ordenou aos cartórios o cancelamento dos registros que foram bloqueados em 2006, também por decisão do CNJ.
Com o cancelamento definitivo do registro em cartório, a solicitação do fazendeiro passava a se enquadrar na figura processual da “falta de interesse para o prosseguimento do feito”. A magistrada então julgou “extinto o procedimento de desbloqueio de matrícula sem resolução do mérito”.
Pelos mesmos motivos, outros processos com pedidos de desbloqueio de matrículas de imóveis rurais na vara agrária de Castanhal foram cancelados sumariamente, sem a análise das razões apresentadas pelos detentores desses domínios.
Município de Paragominas foi criado em 1965 e atraiu na década de 1990 uma grande leva de migrantes sulistas |
28 milhões de hectares
A mesma situação se repetiu em Redenção, no outro extremo do Estado. A juíza Leonila Medeiros, no exercício da vara agrária da comarca, negou o pedido de desbloqueio de matrícula feito pela Agropecuária Araçatuba, voltando atrás na decisão anterior, por causa do novo provimento, apesar da manifestação favorável do Iterpa e da data da expedição dos títulos. A juíza entendeu que, como eles só foram matriculados em 1997, era necessária a autorização legislativa, “por conta da extensão da área do imóvel”.
E assim deverá se repetir em todos os cartórios imobiliários do Pará, se for cumprida a decisão do CNJ. O conselho mandou cancelar os registros de 5,5 mil imóveis rurais. Não só dos que já estavam bloqueados há quatro anos, mas de todos que tenham áreas superiores a 2,5 mil hectares ou até 10 mil hectares, conforme o tamanho máximo admitido para a concessão de títulos de terras sem anuência legislativa, em diferentes datas. Na menos grave das hipóteses, significa a perda da condição de propriedade legal de uma área de 28 milhões de hectares, mais de 20% de todo território paraense.
Regime militar quis adotar medidas semelhantes
Se adotada durante o governo militar, a medida seria considerada autoritária, quase ditatorial. Alguns dos presidentes-generais até recorreram a procedimentos semelhantes, sem conseguir, com isso, alcançar o objetivo da iniciativa: limpar os registros cartoriais das suas ilegalidades e irregularidades, e combater a desenfreada grilagem de terras na Amazônia.
Embora seja de natureza administrativa, a iniciativa do corregedor nacional do CNJ está autorizada por normas legais específicas, ainda que impondo a supressão do “devido processo legal”, com amplo direito de defesa e o contraditório, pelo argumento absolutista da falta de interesse legítimo de agir. No entanto, não é tão isenta de efeitos como sugere a tranqüilidade do conselho.
Durante anos o Iterpa (Instituto de Terras do Pará) acumulou pareceres sobre os vícios dos títulos de propriedade que lhe foram submetidos para a expedição de certidões (55% das 13 mil que foram expedidas não apresentaram a cadeia dominial completa, a partir do desmembramento das terras do patrimônio público, segundo Girolamo Treccani, do Iterpa). Uns, porque simplesmente nunca foram expedidos pelo Estado: eram falsos.
Outros, por irregularidades várias. Mas também por deficiência no arquivo do instituto, originado da Secretaria de Agricultura (e, antes dela, da Secretaria de Obras e Terras), ou fraude na emissão do título na instância oficial.
Derrubadas feitas pelas primeiras companhias colonizadoras – Marajoara e Cidade Marajoara – no final dos anos 1950, antes da rodovia Belém-Brasília /BIBLIOTECA IBGE |
Dupla responsabilidade do Estado
De qualquer maneira, muitos dos papéis passaram por dois servidores públicos: o funcionário do órgão de expedição do título e o oficial do registro de imóveis, este dotado de fé pública. Durante anos esses papéis foram considerados válidos e suas matrículas não foram questionadas.
Delas resultaram empréstimos bancários e várias outras operações, comerciais e financeiras. Logo, se o cancelamento for mantido, como parece que ocorrerá, os prejudicados podem cobrar a responsabilidade civil do Estado em duplo grau, através de ações de indenização por perdas e danos, lucros cessantes e outros itens previstos. Podem vir a somar milhares de ações, com valor de centenas de milhões de reais.
A determinação do CNJ pode se fortalecer pela certeza de que tais demandas consumirão anos e terão desfecho imprevisível. Mas não é só uma questão de responsabilidade civil, a ser apurada quando as ações começarem a pipocar na justiça, com todo tipo de fundamento que a complexidade da questão possibilita. Ela envolve também uma diversidade tal de situações da qual, por falta de dados confiáveis, só se terá uma idéia mais concreta nas próximas semanas, à medida que os atingidos verificarem o alcance da iniciativa do CNJ e tomarem alguma iniciativa.
O tiro que o conselho deu para matar, com uma única bala de prata, parte da grilagem praticada no Pará, pode atingir tanto os malfeitores quanto empresários bem intencionados (e bem sucedidos) e agricultores de base familiar. O remédio pode ser tão forte que acabará por liquidar muitos dos pacientes. Ou resultar inócuo, como durante os governos militares. O novo cenário está apenas se delineando. Promete, porém, conturbação.
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