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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

A esquisita morte do cavalo do meu avô


            Já tenho falado algumas vezes nesse avô virtual que se me surgiu como quem surge do nada.

         Ao contrário de mim, é bem falante, valente, audacioso, intrépido, voluntarioso e assaz espirituoso.

         Eu, tímido pela própria natureza, sou versado na alegria que se expande nas histórias que vou recolhendo, principalmente desse parente tão criativo, quanto questionador.

         Mas, homem enxavido (termo da época do Lúcio Albuquerque), vou nutrindo a esperança de poder agradecer a vida e as lições de vida que pude alcançar.

         Dentre essas lições está aquela que transpõe a amizade entre um animal e o seu dono, para entronizar nas recordações do segundo a lealdade que recolheu do seu animal de estimação. Ainda que essa demonstração de afeto ultrapasse o desejo de servir o amo, acima das próprias condições que a natureza lhe reserva.

         Mas eu lhes dizia que meu avô era valente e intrépido. Ocorre que era bem mais que isso: tinha uma saúde de ferro.

         Eu afirmo tinha! Mas, um dia adoeceu e desmaiou. Cânfora lhe deram para cheirar, assim como Álcool e Amônia. Não voltou a si! Massagens nas têmporas, muita água, banho com água gelada... E nada.

         Nenhum automóvel estava disponível, ali na fazenda. O que fazer? O encaminhamento da solução partiu de Dona Hermengarda, a benzedeira, moradora antiga do lugar. Suas rezas, espargindo ramos de uma planta molhada não produziram o efeito desejado...

                   –Só tem um jeito: preparemos uma estrutura apoiada na sela e ele vai montado, bem amarrado preso ao Bolero, seu cavalo de estimação. Ele, o equino, conhece o caminho da cidade. Só são 20 léguas, a distância que nos separa de lá.

                   –É mesmo! O Bolero conhece o trajeto. Deixa que eu faço as recomendações ao animal.

        E Genivaldo, o capataz da fazenda, pôs-se a dialogar com o cavalo. Alguém pelo rádio chamou um amigo, o doutor Epaminondas Boticário.

                   –Bolero, Bolerinho querido! sabe que é, mermão –o cavalo abriu bem as orelhas e seus ouvidos ficaram atentos– você precisa levar o patrão até Guajará. É urgente! Ele está muito doente e precisa ser salvo. Você é o nosso herói! Você tem que chegar logo lá, custe o que custar.

         Genivaldo derramou algumas lágrimas e, mirando olho no olho para o Bolero, eis que viu lágrimas descendo abaixo, pelas laterais da cara do bicho. Ambos estavam visivelmente emocionados! Aquele “custe o que custar” martelou na cabeça do Bolero!...

         Umas ripas foram instaladas, bem firmes, como disse, ali na sela. E meu avô, embora desacordado, foi ali amarrado, como se El CID fosse. E novos conselhos Genivaldo transferiu para os ouvidos e para o cérebro do Bolero. Ele piscava como se tivesse compreendido todas as mensagens, balançando a cabeça aquiescendo.

         Já saiu flamejante, precisamente às 08 H 45 M, cuidando para não derrubar o meu avô. As vinte léguas foram percorridas sem incidentes e sem acidentes; entrementes, a equipe do hospital onde o cavalo entregou o doente estava a postos. Uma maca já respondia presente ali fora, antes da recepção do nosocômio; três médicos e seis enfermeiras foram as testemunhas de que o cavalo cumpriu mais essa missão. Caminhou numa velocidade superior a 67 Km e chegou em tempo de meu avô ser medicado e salvo.

          Os olhos petrificados do Bolero demonstravam que fizera um esforço extra, descomunal, “sobre-animal”.

         Porém, os médicos observaram que, tão logo o Bolero entregava o paciente, após a retirada da sela, desamarrando-o, ele, o Bolero, foi caindo, caindo, caindo... e caiu no chão.

                   –Mas esse cavalo está morto, mortinho da silva, disse o doutor Epaminondas Boticário, amigo do meu parente, que, informado da chegada do doente, foi dar apoio. Sabia-se que Epaminondas, além de competentíssimo perito, era dono do mais completo laboratório de veterinária do município. O profissional da veterinária, ainda, aduziu:

– Até parece que chegou morto aqui.

         E, estudioso que era, resolveu valer-se dos seus conhecimentos e aparatos científicos para realizar uma perícia nos órgãos do cavalo que salvara a vida do seu amigo, o meu avô.

         Um exame percuciente foi cumprido. Infarto fulminante, com morte súbita, o diagnóstico. Provas e contra-provas confirmadas. Uma conclusão saltava os olhos: o cavalo morrera uma hora depois da partida. Valendo-se da sua capacidade extra-sensorial, com a velocidade adquirida, –recordemos, mais de 67 km por hora– chegou à cidade menos de duas horas depois, apenas no embalo, na banguela, na inércia que relembrou a história da flecha atirada ao infinito. Sabe-se que um cavalo veloz já atingiu a marca dos 64 Km/H.

Como se programara para cumprir aquele itinerário, o cavalo Bolero alimentou o seu cérebro, antes da sua passagem para a outra dimensão, com foco no trajeto e, dessa forma, salvou a vida do meu avô, em que pese a morte que, uma hora depois da partida não o tenha impedido de deslocar-se muito acelerado, outro tanto de quilômetros, repito, apesar de morto, “veramente” falecido; mesmo assim, correndo, teve a iniciativa de parar em frente do hospital, num movimento mecânico.

         Por gratidão ao seu bicho de estimação e seu salvador, meu avô, após vender uma partida de bois gordos, mandou rodar um filme em que enaltecia a lealdade, o desprendimento e a generosidade, com o título o “Último Bolero em Guajará”, que teria como protagonistas Marlon Brando e Maria Schneider, astros líderes da película “O Último Tango em Paris”.

         Que pena! Com a morte do Bolero, Marlon e Maria não aguentaram e também partiram para a eternidade...

         Todavia, o Bolero, namorador por excelência, deixou descendentes que são exímios corredores como o pai... e esses filhos também já estão fazendo histórias...

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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